Este texto, publicado na Forja Universal em 31 de dezembro de 2012 (e talvez antes disso na Bacia, não lembro mais), foi solicitado pela Mimosa num comentário do Bluesky. Discos voadores e Jung, o que tem aqui para não ser curtido ninguém sabe dizer.
Podemos supor que, do mesmo modo que o inconsciente nos afeta, um acréscimo no consciente afeta o nosso inconsciente.
Carl Jung em Memories, Dreams, Reflections
A chuva era universal, ocupando o espaço da cidade sem pausa e sem trégua havia dois ou três dias, como se o dilúvio fosse o estado natural das coisas.
O livro que ele pousou em cima da mesa, entre o cinzeiro e a garrafa de Chianti, eu já conhecia, o último dele, publicado quatro anos antes. O desenho da capa mostrava uma cena clássica de abdução: um homem num descampado surpreendido pelo círculo de um facho de luz que descia de um disco voador vários metros acima dele.
– Estou pronto a dar a resposta que você quer ouvir – ele puxou o cigarro aceso do cinzeiro e acomodou-se com naturalidade na poltrona: – Sim, perdi o interesse no estudo da ufologia porque finalmente descobri do que se trata. Ria o quanto quiser, descobri o segredo dos discos voadores.
– Se posso retribuir a sinceridade — eu disse, pousando temporariamente a taça de vinho sobre o sapato da perna cruzada, – você descobriu o que todo homem sensato sabe, que são uma ilusão e uma farsa. Só não entendo porque não teve a hombridade ou o senso comercial de publicar uma retratação. Imagino que venderia bastante, a retratação pública de um ufólogo famoso.
Ele sorriu muito menos cinicamente do que eu esperava.
– Imagino que venderia bastante, tenho de concordar. Mas acredite, pode ter sido coisa mais embaraçosa pra mim entender que os discos voadores são coisa muito real.
– Na minha opinião, o que você descobriu foi bem o contrário: que sua posição oficial, de que os ovnis são uma realidade física, foi ficando cada vez mais difícil de sustentar. Mais de cinquenta anos de pesquisa e ninguém conseguiu produzir uma única evidência convincente. Uma única foto inequívoca. Um único parafuso. Você finalmente entendeu isso e saiu de cena de fininho, levando toda a dignidade que conseguiu recolher dos destroços. Seria muito custoso admitir publicamente a verdade: que os discos voadores são um sonho que as pessoas inventaram na tentativa de construir um significado cósmico para a realidade depois que todos os significados cósmicos foram publicamente ridicularizados. Como dizia Jung, que são o mito do século XX.
Ele sorriu e olhou-me nos olhos, aparentemente deleitado com a minha sinceridade, mas deu uma baforada sem acrescentar nada ao sorriso.
– Estou errado? – insisti.
– Muito – ele esmagou o cigarro no cinzeiro. – Para começar, você ficaria surpreso com as coisas que Jung tinha a dizer sobre a realidade dos mitos. Depois, está errada a sua interpretação barata do meu recolhimento. Se abandonei o campo não foi porque entendi que uma evidência física seria impossível de produzir, embora em retrospecto realmente o seja. A coisa decisiva foi… que a própria natureza da minha descoberta levou-me a perder imediatamente qualquer interesse em fazê-la pública. Digamos que descobrir a resposta ao mistério fez de mim um cínico, não um convertido.
– Você jogou bem – admiti. – Jogou muito bem: saiu de cena sem perder o charme e evitou o constrangimento de oferecer uma verdadeira resposta. Em particular, seu cinismo recém-adquirido funciona como uma camada protetora. Você não vai me contar o grande segredo nem mesmo se eu implorar, e vai poder sempre me dizer que está me protegendo de uma realidade que para mim poderia se mostrar terrível demais.
– Mais um engano seu. Não vejo porque você deva morrer sem saber. Não que vá fazer qualquer diferença.
– Estou pronto – reclinei-me. – Ainda melhor se não vai fazer diferença.
Ele mordeu os lábios e serviu-se de vinho, como se estivesse usando o intervalo para medir as palavras ou achar o melhor caminho para a intervenção.
– Há pouco – ele finalmente entrou em acordo consigo mesmo – você disse que os discos voadores são um sonho que as pessoas inventaram para dar um significado ao mundo. Digamos que está tudo aí.
– Então você concorda comigo que são um sonho? Está admitindo que não passam da projeção de um anseio?
– Você é um cara estudado – ele apertou a borda da taça contra o bigode. – De onde vem os sonhos?
– Sonhos em geral?
– Sonhos. Sonhos. Aqueles que as pessoas têm quando dormem. De onde vêm?
– Vamos ter mesmo essa conversa? Você quer uma resposta do século XX? Do inconsciente. Os sonhos são mensagens do inconsciente para o consciente.
– E que vocabulário o inconsciente usa para se expressar?
– São mensagens em código. O inconsciente, por ser inconsciente, não tem como se expressar diretamente, por isso usa nos sonhos um vocabulário simbólico tirado da mitologia pessoal de cada um.
– Você não usou o termo técnico que eu queria ouvi-lo repetir, projeção, mas sua explicação é justa. Você diria então que nos sonhos comparecem imagens da memória e da realidade física, retrabalhadas ou re-significadas pelo inconsciente de modo a indicar uma coisa oculta.
– Essa é a teoria.
– E é claramente uma teoria articulada pelo ego, pelo consciente, porque ao mesmo tempo consegue ponderar a verdade e deixa de lado a verdadeira revelação.
– A revelação que você seguramente vai dividir comigo só depois de adiar o quanto puder.
– De jeito nenhum. Veja, estamos acostumados a pensar que os sonhos são projeções imperfeitas da realidade; que são confusos ou misteriosos porque o inconsciente é incapaz de apropriar-se da realidade com a competência e a capacidade de organização da mente consciente. Na nossa cabeça, o consciente é lúcido e esperto e lida com a realidade; o inconsciente é um asilo de loucos e um inferno e um caos: uma casa de espelhos de parque de diversões, que lida não com o real mas com fantasmagorias. Só conseguimos pensar no inconsciente como um mundo subterrâneo, como uma não-existência em que flutuam sem nexo e sem ordem elementos que são ao mesmo tempo projeções e distorções daquelas porções da realidade que apreendemos com os sentidos e com a mente consciente. É revelador que pensemos no inconsciente como povoado por projeções do conteúdo que o consciente recolhe da realidade, porque na verdade é precisamente o contrário.
– Como assim?
– A verdadeira não-existência é aquela da mente consciente, claro. O ego é que é uma construção. O inconsciente não é povoado por projeções: a mente consciente, bem como aquilo que o ego constrói como realidade, é que são projeções do inconsciente.
Concedi à coisa toda o silêncio que merecia e bebi um gole de vinho antes de voltar à carga.
– E o que isso tem a ver com o nosso assunto? Você está tentando dizer que os discos voadores são eles mesmos mensagens do inconsciente? Que são sonhos que invadem a realidade física, por assim dizer… já que para você a realidade é uma projeção do inconsciente?
– Creia-me, não é nem de longe o que estou tentando dizer. Pense assim: se não houvesse espelhos as pessoas provavelmente nunca chegariam a entender que existe uma diferença, uma vírgula ou um abismo, entre elas mesmas e o mundo. Um espelho é um acidente revelatório na vida de cada um. Ver um disco voador é ter um encontro semelhante com uma revelação vertiginosa que, de outro modo, poderia ficar para sempre oculta. E exige uma conclusão tão portentosa que achamos absolutamente necessário revertê-la na tentativa de anulá-la.
Ele recolheu o livro, atirou-o mais para perto de mim sobre a mesa e apontou para o desenho da capa.
– O que você está vendo? O desenho, o que está mostrando?
– Uma cena de abdução – cedi, impaciente. – O sujeito está para ser sugado para dentro do disco voador pelo raio de luz. Spielberg. Hollywood.
– Olhe de novo, que está tudo aí.
– Não estou vendo o que você vê – insisti. – Você precisa aprender a deixar de contar com o meu brilhantismo. Sou um cara obtuso, especialmente se sinto que estou sendo guiado para uma conclusão.
– Você não vê? – ele inclinou-se para a frente e fez o dedo percorrer o desenho. – O homem no chão, o facho de luz projetando-se da máquina no céu em direção à terra? Trata-se de iconografia que muito claramente existe para ocultar a verdade em plena luz do dia.
– Não entendi – mas a essa altura talvez já tivesse.
– Há muito tempo temos descartado os discos voadores como se fossem projeções do inconsciente. Você mesmo não usou outro argumento desde que chegou. Meu caro, o ego insiste com tanta fúria neste ponto porque não quer admitir que na realidade é o contrário. As projeções não são a máquina no céu. Aqueles que avistam um disco voador são os que por algum deslize do sistema acabam contemplando diretamente, por alguns instantes, o projetor.
Meus olhos voltaram instintivamente para o desenho cru na capa do livro: a silueta do homem lá embaixo definida pelo facho de luz que se despejava de uma abertura circular numa máquina no céu.
– Os discos voadores não são a projeção – ele foi inclemente e achou que devia dizer com todas as letras: – A projeção somos nós.
Publicado na Forja Universal em 31 de dezembro de 2012