O europeu se chegou sabendo sorrir
O brasileiro inventou pagando caro a alegria
Mestre Mariçá do Alagoano (1896-1967)
Que o europeu pisando calçado a areia da praia contaminou com a febre sua estranha a terra do descalce e da rede de balanço, a terra da pele sem cambista estendida feito tamborim e exposta por baixo ao terreiro, por cima ao cipó, à direita ao bicho e à esquerda ao mar, deixando-se toda ver, pele deixando-se lavar, deixando-se colorir, é seguro e foi. Para São Côro o contaminante criminoso foi o senso de História e de progresso num território de perenidades, de nudezas arcaicas e de causas móveis; para Carnivaldo de Bezerros a doença veio no lombo da palavra escrita, aqueles
“batalhões e batalhões de palavras danadas infernais [marchando] sertão adentro, palavras encapuzadas encardidas, sórdidas comemundas, palavras mortas arrastadas a uma parecência de vida pela magia necromante, granhenta do invasor. Palavras engarrafadas na pele de árvores moídas, palavras que possuam quemseja as lê, nesta terra vão marchar. Palavras escritas a coisa-cadáver, a morte rigorosa da vida que pode haver nas palavras; pobresecas, maldizentes, cor-de-cinzas vão marchar.”
Está escrito ainda se não lesse, começou a dize o cristão entrador onde calcou a bota. O corpo do livro e a autoridade do livro tangidos pelo europeu inventavam desse modo de dobrar e dominar pela palavra redimorta até mesmo o corpo vivente que não conhecia e que não queria o embaraço de ler: os povos indígenas e os povos africanos sequestrados a terra alheia e à mesma condição. Esses viam a palavra desencarnada traficando para reger e reduzir a mera página de dobrar as carnes de gente viva; viam a palavra escrita como a oralidade aniquilada, arrastada pelo mau-olhado dos livros e documentos ao inferno da sobrevida, artifício de um mundo opaco que pairava fora do mundo e exigia sobrepor-se com primazia a este da pele que arranha e arrepia. Arapuca vadia que não houve quem desarme / O Verbo fizeram desencarne, sentença de Zefinha do Claricôco.
Na marcha sua a palavra escrita deitava em corpos e território as pisaduras inventadas gêmeas da [1]autoridade de fora e [2]da propriedade, ousando declarar suas validades demarcatórias sobre a pele de quem não tinha escrito, não tinha lido e menos tinha assinado: a gestão do corpo seu é minha; a terra onde sua não é sua; a liberdade por direito tenho eu: a de vossia querendo vai comprar.
Os corpos africanos e originários, vendo-se estroncados pelo que uma vez inventado não podia ser vencido nem cancelado, entraram pela fresta de inventar coisa maior e mais rica, encantada fosse, que pairasse acima do mundo opaco da coisa-cadáver que arrastava por onde ia pisando o opressor. Esventraram do patrimônio deles invisível que ninguém toca um modo-de-estar que não se definisse pela pauta do opressor, que com o agressor recusasse por completo a se identificar.
Essa mandinga passava de um lado pela louvação e pelo movimento dos corpos, pelos pintes, pelas gingas, pelos banhos cheirosos, pelos quitutes e derrames, pela ocupação da rua, pelo alinho com a encruzilhada, pelos giros que não crescem quando se se entra e não diminuem quando se sai, por capoeiragens, bateção de palmas, por cocos e rodas; passava do outro pelos ritos da subversão da palavra ela mesma, fosse adesão ao grotesco, fosse invenção de dialetos, fosse catequização da ofensa e hagiografia do desafio, fosse no chamar entidade com nome de santo, fosse o pavio perene aceso do repente, fosse o fio impossível de seguir da cantoria e do cordel – coisas que com o corpo e com a palavra o branco não sabia fazer. No Seridó e no Cripocó, para não ir longe, essas tendências geraram no literário a cultura das listas, os romances do orotimbó, a poesia de enumeração, a cabrada e o rebente.
Na peia de Mestre Mariçá: O europeu se chegou sabendo sorrir / O brasileiro inventou pagando caro a alegria.
[do capítulo introdutório de Abra Cabrada: o Talmude da folia e a cabala dos arrecifes.Amâncio Travelóquio, Patos, 1946]