São Cangüira contra o mundo

O próprio santo conta que uma frase atribuída a Diógenes 1 num lunário perpétuo impresso em Recife em abril ou maio de 1650, encontrada dois ou três anos depois por Antônio Cangüira em sua tapera de Bezerros, foi a semente geratriz das paixões e os nortes de São Cangüira. Antônio tinha naquela altura vinte e poucos anos, não sabia ler e nunca chegou a aprender: a frase quem levantou-lhe do almanaque foi o pároco Dom Oleandro Píramo.

Não há nada mais estrangeiro ao coração do homem do que a razão, teria dito Diógenes, e nesse juízo São Cangüira encontrou sua epifania e sua declaração de missão. Estava ali embrionária a doutrina sua do humanismo transracional, seu ministério de contenda perpétua contra a lógica e contra a racionalidade.

Começou ali e foi longe, porque para Cangüira a razão não é apenas alheia, é inteiramente hostil a tudo que é humano no pensamento, na conduta e na cultura. Contra mundum e “luta contra a carne” são para santo não mais que outro modo de dizer “contra a morte que reside na lógica cartesiana”. Se a razão natural é “o lodo universal da impiedade”, o domínio todo-outro do humano é “o chamado particular da justiça”:

«Quer ver quem segue a razão
Completamente
E o tempo inteiro? Bicho.
Tem animal velho ou doente
Que coloca em risco
A segurança inteira do bando?
Deixa ele pra trás,
Assim cada um vive seguro.
Ninhada com fome?
Passa no dente a cria mais mirrada
Assim cada um pode encher o bandulho.
O bicho não tem em si
O que o livre do grilhão da lógica,
Não comeu o fruto lhe complete a mente.
Conhece a impiedade só
Porque não conhece motivo de gente
Conhece uma única razão:
A razão somente»

Desse modo, apresentando os animais como seres exclusivamente racionais e os seres humanos como “toda uma outra coisa”, São Cangüira atraía imediatamente a atenção dos seus interlocutores e lhes propunha um enigma: se não era a razão, como queriam os humanistas em voga na Europa, que traço distintivo o homem tinha de seu? O que no homem se podia admirar?

Para Cangüira o ser humano escapou do domínio inflexível do mundo físico e natural, que é inteiramente condicionado pelas exigências do determinismo e da razão, através da criação para si de um novo espaço, um “espaço do justo” ou “espaço do bom” ‒ um reino/refúgio/ideal que existe só na perspectiva do homem e opera debaixo de lógicas novas, completamente autônomas aos ditames da racionalidade.

Nesse domínio-do-humano, um pouco concedido por Deus um pouco roubado da divindade pelo homem, gera-se um espaço ampliado de reflexão, um jardim no mundo mas fora do mundo em que vivem em liberdade razões que a razão desconhece: ideias e ideais que não sobreviveriam um minuto por si mesmas na natureza, mas requerem o dossel criativo (isto é, protetor) da humanidade para vicejar e crescer. Neste domínio – ao mesmo tempo inventado pelo homem e vital para a manutenção da sua humanidade, – o indivíduo encontra espaço de manobra para concluir que explorar e eliminar os mais fracos pode não ser a coisa justa ou certa a se fazer (quando do lado de fora a mera racionalidade ditaria o contrário, e o meramente animal obedece).

O que distingue o humano, então, é a vontade de imprimir ao universo uma feição que não é sua natural, não é racional e não serve a lógica. Isso acontece quando nos içamos do padrão de racionalidade de base (o qual não requer nem esforço nem criatividade) que rege o universo ao domínio (inventado) do sublime, do desinteressado e do justo. Se a razão é natural, o senso de justiça (o “conhecimento do bem e do mal” do Gênesis) é artístico e poético, é espiritual: é divino.

Daqui o axioma mais central do pensamento de Cangüira: a razão não tem nada a ensinar ao homem a respeito da justiça. Quando se trata de determinar o certo do errado, a razão é a morte e o veneno, é o rigoroso inverso de tudo que há de humano no humano.

Buscar a segurança do poder e recusar-se a dividir recursos com os fracos e doentes é tão somente racional: requer ser-o-que-se-é, requisito que qualquer animal pode preencher. Ser humano exige aquela outra coisa, coisa que inventamos: requer ser o que seríamos num universo mais gentil e mais puro do que o nosso.

Em sua longa refutação, Viveiros de Castro observa que certas orações de São Cangüira antecipam as objeções de Giambattista Vico a Descartes e os vislumbres antissistêmicos de Foucault. A doutrina nos poemas do santo, que o próprio Foucault batizou de transracional, delineia em particular uma sorte de humanismo que levado adiante não teria resvalado, concebivelmente, no mecanicismo do Idade da Razão.

Porque o pároco aquele Dom Píramo, que possuía em segredo livros de Erasmo, tentou converter Antônio ao humanismo, mas conseguiu alarmar só o santo ao ponto da insônia e da cãibra.

Dos erros sem volta que Cangüira encontrou em Erasmo, o maior sem dúvida estava em acreditar que Deus dialoga com o homem e se manifesta através da razão. O holandês chega a indicar que a luz da razão e luz da revelação são uma única só, como se a singularidade divina tivesse escolhido manifestar-se no homem através daquilo que em outros planetas e em outros animais não tinha despertado, a racionalidade.

Para São Cangüira, o contrário é que é verdadeiro. Os animais e o mundo natural são máquina, conhecendo apenas e operando na esfera “científica” da razão, na correspondência servil à realidade física. A singularidade divina revela-se exclusivamente no humano, na aspiração ao sublime, naquela brilhante vita nuova de Dante, escrita em italiano vulgar em vez de no latim maquinoso dos tratados.

A razão (a ciência dos números, das necessidades, das concatenações e das propriedades do mundo físico) é o ruído metálico de fundo das coisas. É o rumor mundano da máquina. Já o ser humano inventou nesta rocha uma coisa, talvez a única, que o universo não tinha ainda conhecido: o senso de justiça, a ideia de que pode ser errado obedecer os meros ditames da lógica, a ideia de que pode existir um modo de se fazer ao mesmo tempo possível, desejável e superior. Uma presunçosa insensatez, sem dúvida, mas uma insensatez que acabou gerando tudo que chamamos de humano, inclusive a divindade.

Porque não era como suspeitavam os humanistas, que Deus inventou a singularidade no universo ao conceder a razão ao homem. O homem é que trouxe singularmente Deus ao universo, inventando a noção de uma justiça que operasse autônoma da razão e dos ditames crus da realidade. O homem efetivamente inventou Deus (bem como a concorrente possibilidade de misericórdia), e a esse ponto o mundo racional/natural não teria jamais chegado sem a intervenção humana.

Por outro lado, na invenção humana da divindade, das virtudes e das religiões o Deus invisível à razão pode ter encontrado ocasião de finalmente se revelar no universo.

Que Deus se revela no humano está naturalmente dito com todas as letras nos evangelhos. O domínio-do-humano de Antônio Cangüira é o reino de Deus do Filho do Homem, um espaço de aspiração à igualdade e à justiça num mundo de outro modo impiedoso, determinista e hostil.

Na oração de Jesus, venha o teu reino não é um convite a manifestações cada vez mais intimidadoras do poder divino, mas um convite ao estabelecimento de um mundo cada vez mais… humano, querendo dizer um mundo menos condicionado pelas limitações da razão (“até os pecadores amam aqueles que os amam”2, porque operam amados e amantes debaixo da mesma lógica racional de oferta e demanda).

Chama-se reino de Deus para esconder dos mesquinhos que é o reino do humano. Chama-se reino dos céus porque a ideia de justiça não tem base no universo da experiência física/racional: é um conceito que pertence unicamente à esfera inventada e alada do humano, seu esplendor refletindo um mundo que não existe ou é impermeável à razão.

É um reino que convidado a vir pode acabar de fato chegando: se formos como seríamos num universo mais gentil do que o nosso, podemos acabar domando um pouco que seja à gentileza este mesmo.

 

[do capítulo São Cangüira contra o mundo da Hagiografia poética do Serestão.
Muraci Calandra, Canindé, 1973]