Os precursores da literatura de cordel

A devoção ao absurdo, ao grotesco, ao cômico, ao fantástico; o amor ao impropério, à festa, à licenciosidade, aos prazeres mais chãos; o jogo de palavras, a provocação, o acúmulo de ofensas, a reversão das convenções estabelecidas; a justaposição de contrastes, a crítica social e a representação sem vergonha das funções menos públicas do corpo: cada um desses componente do imaginário e da prática do cordel tem um excedente de antecedentes literários que o cordel não explicam nem esgotam, mas servem para localizá-lo no interior de uma grande e arretada constelação.

Se me proponho a entabular um registro muito parcial (nos dois sentidos) dessas ancestralidades, não encontro, por motivos mais do que um, por onde começar que não seja com a poesia cômica italiana do período medieval.

Essa raça particular de poética (comica, burlesca, giocosa, goliardica – nem mesmo os italianos estão de acordo sobre como chamá-la) veio à luz na Toscana na segunda metade do século 13, e basta cruzar a data com a geografia para entender que em teoria o movimento poderia envolver até mesmo Dante, aquele Dante – o que efetivamente, incrivelmente acontece, e o seu envolvimento é mais do que periférico.

Se o cordel tem uma longa série de precursores – o romance História verídica (totalmente inventada) de Luciano, no segundo século; as centenas de canções profanas do manuscrito Carmina Burana, compilação de provocações anticlericais dos séculos 11 e 12; o tenso (desafio poético, prenúncio do repente) e os fablioux (narrativas cômicas curtas, tendendo ao escatológico e ao obsceno) dos trovadores de Provença, a partir do século 121; as cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores galego-portugueses, dos séculos 13 e 14; o indecoroso Das Nonnenturnier/a competição das freiras alemão, preservado numa única cópia do século 152; os poemas heroico-cômicos Gigantea/a epopeia dos gigantes de Girolamo Amelonghi e Nanea/a epopeia dos anões de Michelangelo Serafini, do século 16; o flyting (desafio ou duelo de impropérios, descendente do tenso) dos escoceses dos séculos 15 e 16; Rabelais, que é Rabelais; os chapbooks em papel de baixa qualidade da tradição inglesa dos séculos 17 e 18, – o desconcertante, no que me diz respeito, é entender que o sabor literário e a estética que associamos ao cordel existia já nitidamente entre França, Itália, Espanha e Portugal3 em, digamos, 1250.

O Brasil só seria pisado pelo europeu mais de dois séculos depois, e os primeiros escritores de cordel sentariam para escrever outros quatro séculos mais tarde, mas é razoável supor que sem os impenitentes cantadores da Idade Média (e não se iluda, a maior parte desses poetas era estudante de teologia ou parte efetiva do clero) não existiria O cavalo que defecava dinheiro de Leandro Gomes de Barros (1865-1918) ou A chegada de Lampião ao inferno de José Pacheco (1890-1954)4

Para batizar esse navio, inquiro dois breves exemplos, os dois de Cecco Angiolieri (1260-1313) de Siena:

Tre cose solamente m’ènno in grado

Só três coisas são do meu agrado,
E dessas três vivo insolvente:
Mulher, um bar e o jogo de dados
São o que me faz viver contente

Mas dessas coisas tristemente sou poupado
Porque a falta de recursos me desmente
Quando, olha, penso nisso fico irado
Diante do que, sendo pobre, sou carente

E digo: «Por que uma flecha não te alcança?»
Falando do meu pai5, que me mantém na cruz
Que eu mais seco não seria vindo a pé da França

É mais duro tirar um centavo dele, por Jesus
Na Páscoa quando do pobre se enche a pança
Que ensinar urubu a caçar avestruz

«Tre cose solamente m’ènno in grado,
le quali posso non ben ben fornire,
cioè la donna, la taverna e ’l dado:
queste mi fanno ’l cuor lieto sentire.

Ma sì·mme le convene usar di rado,
ché la mie borsa mi mett’ al mentire;
e quando mi sovien, tutto mi sbrado,
ch’i’ perdo per moneta ’l mie disire.

E dico: «Dato li sia d’una lancia!»,
ciò a mi’ padre, che·mmi tien sì magro,
che tornare’ senza logro di Francia.

Ché fora a tôrli un dinar[o] più agro,
la man di Pasqua che·ssi dà la mancia,
che far pigliar la gru ad un bozzagro.»

S’i’ fosse foco

Se eu fosse fogo, faria arder o mundo
Se fosse vento: retalharia
Se fosse água: afogaria
Se fosse Deus, atiraria no abismo profundo

Se eu fosse papa, como seria contente
De pôr um contra o outro cada cristão;
Se fosse imperador, nessa ocasião
Cortaria a cabeça de toda a gente

Seu eu fosse a morte, meu pai teria visita
Se fosse vida, eu lhe fecharia a torneira
Minha mãe, o mesmo destino suscita

Se eu fosse Cecco, como sou e sem peia
Pegaria mulher jovem e bonita
Deixando aos outros as velhas e as feias

«S’i’ fosse foco, ardere’ il mondo;
s’i’ fosse vento, lo tempestarei;
s’i’ fosse acqua, i’ l’annegherei;
s’i’ fosse Dio, mandereil’en profondo;

s’i’ fosse papa, serei allor giocondo,
ché tutti cristïani embrigarei;
s’i’ fosse ‘mperator, sa’ che farei?
a tutti mozzarei lo capo a tondo.

S’i’ fosse morte, andarei da mio padre;
s’i’ fosse vita, fuggirei da lui:
similemente faria da mi’ madre,

S’i’ fosse Cecco, com’i’ sono e fui,
torrei le donne giovani e leggiadre:
le vecchie e laide lasserei altrui.»