Os apuros da comédia

Estamos deitados numa cama no meio do palco do Royal Court Theatre quando pergunto a Bernard Shaw se já ficou decidido se a tragédia é superior à comédia. Ele me beija o bigode e responde: «é engraçado.»

Joseph Campbell já foi cancelado por muito menos, mas lembro com clareza o destelhar da alma que foi ler pela primeira vez esta passagem de O herói de mil faces:

Em consequência, não conseguimos atribuir à comédia o status elevado da tragédia. Enquanto sátira a comédia nos parece aceitável, um divertido refúgio escapista, mas o final feliz do conto de fadas não deve ser levado a sério: ele pertence à terra do nunca da infância, protegida que é das terríveis realidades que mais cedo ou mais tarde serão trazidas à consciência […] Esse sóbrio paracer contemporâneo é fundamentado numa completa ausência de compreensão das realidades representadas no conto de fadas, no mito e nas divinas comédias de redenção – que no mundo antigo desfrutavam de status mais elevado do que a tragédia, enquanto portadores de uma verdade mais profunda, uma percepção mais exigente, uma base mais sólida e uma revelação mais completa.

A mera ideia, senhoras e senhores, de uma linha temporal em que a comédia desfrutasse de “status mais elevado do que a tragédia”; o conceito, desenvolvido por Campbell mais adiante, de que a comédia nada tem de escapista, que pode ser artisticamente mais ambiciosa do que a tragédia, que em seus voos mais fantásticos opera paradoxalmente mais próxima do Real – esses vislumbres, a seu modo subversivos, nunca me abandonaram.

«Só que não» – os críticos de Joseph Campbell entram a esta altura pelos corredores da plateia, munidos de bibliografias mais impressionantes e argumentos mais fundamentados, e não tenho como rechaçá-los.

Sem contar que hoje em dia ninguém passaria impune fazendo generalizações sobre o que pensava “o mundo antigo” (qual mundo antigo? de que região? de quê tradição?)1, a afirmação de que a comédia já foi considerada superior à tragédia permanece controversa. O testemunho talvez mais relevante, aquele de Aristóteles no segundo livro da sua Poética, não subsiste: a última cópia, como está escrito num livro que não teria motivo para mentir, acabou queimada com a biblioteca da abadia anônima de O nome da rosa.

No que temos acesso ao que Aristóteles deixou escrito parece transparecer uma preferência, elitista ou parcial que seja, pela tragédia. Seu parecer “a comédia é uma imitação de gente inferior” pode dizer respeito ao conteúdo (na sua definição a tragédia retrata a trajetória formidável de deuses, heróis e reis; a comédia narra os apuros de gente sem status), mas pode também refletir um juízo de valor moral ou artístico.

No que se mostraria talvez ainda mais relevante, a própria definição de comédia permanece pouco clara na Poética – e, talvez como consequência, ao longo dos séculos. Dependendo do argumento que está elaborando, comédia para Aristóteles pode indicar [1] uma peça teatral que envolve problemas comuns de gente comum, [2] uma peça com um final feliz (ou, pelo menos, em que ninguém morre) ou (como no sentido popular contemporâneo) [3] uma história com tratos cômicos definidos.

Para Aristóteles, a comédia descreve as pessoas como sendo mais desprezíveis do que normalmente são, e por um bom motivo: sua tarefa é fazer rir os seus espectadores, e “aquilo que provoca o riso é uma espécie daquilo que é reprovável”2 . Ou: “o risível é um erro ou desgraça que não envolve dor ou destruição”.

Não são, convenhamos, meias-palavras: cômico, risível, comum, trivial, desprezível, inferior – nada nesse vocabulário, Campbell meu velho, parece indicar a superioridade da comédia.

Tudo parece perdido: eu e Bernard Shaw estamos ali em cena mentindo sozinhos, nus como danados de Doré, assediados de todos os lados pelo erudito de mil faces.

No último instante sobe nesse palco sem dizer uma palavra Dante Alighieri, a testa perfumada de louros e a alma cheirando a talco, e todas as críticas se dissolvem no ar, pulverizadas sem piedade pelo fulgor simétrico da rosa mística.