O santo xingador: a teologia da ofensa de São Tregésimo do Igarité

«O inferno não é
Onde todo mundo se xinga:
É onde todo mundo se ofende
Vossia não quer ser caçoado
Mas também não pediu pra nascer
Entre o vivido e o aviltado
Diferença não vejo ter»

Está dito que São Tregésimo (1367-1443), o Linguadura padroeiro do repente, o Igarité, o santo xingador do litoral norte da Bahia, não tendo conhecido alma que não estivesse pronto a achincalhar, era buscado de um lado por quem queria experimentar a sua imoderação, do outro por quem o queria convencê-lo a se moderar. Parte da sua santidade estava ligada ao fato de que lhe era impossível distinguir entre uma coisa e outra: a todos Tregésimo concedia, com a mesma dura graça, o mesmo tratamento aviltante.

«Bom seria que se fodessem por si
Não viessem aqui a ralar-me as bolas
Mas ao filho da puta que não pari
Pau no cu é meu remédio e sua esmola»

De registro contemporâneo há material que baste, mas os admiradores de Trigésimo (como os pintores medievais que colocaram Francisco anacronicamente aos pés da Jesus como testemunha da crucificação), ampliaram o seu despejo narrando a contenda do Linguadura com toda sorte de personagens de outras épocas. Entre cordel, hagiografia e lenda há registro de encontro de caçoada de Igarité com o diabo, com o papa, com o gigante Areçu, com o mapinguari, com Catimbó, com Nero imperador, com São Francisco, com Luara, com Lampião, com o Boto, com Caramuru, com Ferrabrás, com Jesus, com a Compadecida.

Cada conferência dessa é esporro e sarrafada, pouco importando se com fundamento ou não. Do diabo Igarité crítica a preguiça, de Jesus a inocência; o Boto vem zombado pela falta de castidade, Nossa Senhora pelo excesso. São Francisco é lenhado pela virtude, que pelo contraste teria condenado o homem comum ao peso da culpa. Lampião é rico, é elegante, é bem dotado, é de baixa estatura, e de tudo isso devia aparentemente se envergonhar.

No mundo que precede a lenda, com os seus contemporâneos e conterrâneos, o Igarité não era que se saiba mais respeitoso ou menos despropositado. Ao bispo de Salvador, homem frugal conhecido pelas suas boas obras, que chegou carregado numa liteira:

«O primeiro que pede respeito
É o mais arriado de defeito
Vossia se vê sentado no ouro
Eu lhe vejo nas pregas do couro
Se ri pelos livros que comprou
Eu vejo as toras que cagou
Não me venha batendo a peça
Em jegue eu vi maior do que essa
Gordo carregado desse jeito
Vi só o cateto girando no espeto
Não é a toa que ontem na costa
Vim sentindo um cheiro de bosta
Onde vossia vai chega antes a pança
A merda futura toda lhe espera
E lhe alcança»

Perguntado por que xingava, falava que xingamento é da graça:

«Se está na Escritura até que a chuvarada sua ele faz cair sem distinção sobre maus e bons, é pretensão o cornudo do cristão querer passar pela vida sem se molhar».

E ainda: «vossia trate de ser xingado por quem lhe respeita; o Filho foi que largou-me essa receita».

Se não: a escatologia, a importunação, o calão, o corpo grotesco ligado ao sexo, à idade, à aparência, à ignorância, ao caráter, aos movimentos da mão, às indiscrições dos furos, aos percursos intestinos; tudo que diz respeito às possibilidades da identidade, da ética e da consciência vivida num invólucro orgânico: nada sujo era, nada injusto, despropositado ou infame quanto bastasse para não vir receitado, fermentado, batido, virado, crescido e desenfornado da boca do santo indo queimar no ouvido ou na face do incauto mais à mão.

Em seu ensaio sobre os quatro santos brasileiros, Benedetto Croce associa a caçoada de São Tregésimo às cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores ibéricos do ciclo medieval.

Aqui como em outro lugar se engana, e foi corrigido por Cascudo, que sublinhou três modos em que a caçoada do Linguadura se distingue das cantorias de maldizer: no caráter aleatório das ofensas, no fato de que das suas caçoadas Tregésimo a ninguém poupa e (causa ou consequência dessa anterior) na autodepreciação:

«Vossia o que esperava além de troça
De um leso ignorante largado na roça
Feio, batoré e criado no imprompério
Que vive entre o mangue e o cemitério?»

A essas distinções Lévi-Strauss acrescenta o tratamento do sexo, visto que não há prática sexual que São Tregésimo condene que não seja num contexto de hipocrisia. Quando menciona a promiscuidade, a homossexualidade, a bissexualidade, a prostituição, o travestismo, o sexo anal e oral (entre variantes) é de regra para criticar os que abraçariam de bom grado essas práticas mas por qualquer melindre se privam de fazê-lo, ou para denunciar os que fazem, negam fazer e tratam da boca pra fora de condenar os que fazem:

«Deixe que os outros se entretenham também
Em vez de dizer que não faz com ninguém
Quer ser macho o mais macho do caritó
Mas viu na vida mais cacete que pôr do sol»

Filho de uma esteireira e de um pataxó, São Tregésimo se ocupava de vender caranguejo. Nas representações mais antigas aparece com um braço enfiado no lodo, tirando para fora e empilhando atrás de si, como se não fossem do seu interesse, toda sorte de órgãos do corpo: mãos, braços, pernas, úteros, falos, rins, corações e moedas de ouro.

[…] na tradição os quatro santos brasileiros têm cada um o animal que o represente, e o de Tregésimo é o tucunaré: peixe de cabeça grande, corpo pequeno, testa virada para o alto e olhos defasados, como o santo aparece ele mesmo nas gravuras e nas esculturas.

Em Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil (Lisboa, 1668), o padre Simão de Vasconcellos conta que o ministério de São Tregésimo começou no nascimento, ocasião em que xingou a parteira, a mãe e a ausência do pai.

Perguntado pela mãe porque vivia criticando tudo que visse, respondeu que também Jesus perdia a paciência quando via coisa errada – «e de coisa errada eu não vejo pouca».

O Apóstolo não tinha então falado que não há um justo sequer? O Filho não tinha chamado Herodes de raposa e os religiosos de ninhada de víboras, e as putas não entram no Reino antes dos carolas?

Resta, para São Tregésimo, a teologia da ofensa: o xingamento universal como manifestação do caráter ilimitado da graça – uma versão caiçara da culpa universal de Dostoiévski. Ou, na expressão de Gomes de Medeiros, a anulação do aspecto condenatório da justiça pela sua indiscriminada aplicação.

«Jesus desceu a lenha nos fariseus
Eu desço a vara no meu e nos teus:
É tudo pau pra mesma obra
É tudo ninhada de cobra»

O povo então se montava em fila pelo milagre de ser xingado pelo santo, e na hora da administração da graça se chorava, se mijava e se ria – e o milagre estava no acerto, no erro, no exagero, no destempero, no riso, na devassa, na própria graça. Simão de Vasconcellos escreve de gente que saía da sala rodeada de lágrimas, sorrindo, suando e respirando afogueada, dizendo-se viva pela primeira vez depois do sacramento do xingamento.

Jupiara Taitó, escrevendo cinco séculos depois:

São Tregésimo liso do Tucunaré
Protetor do riso e do pontapé
Se insultava sem diviso homem e mulher
No peito virava o jeito da maré
Foi assim, vai ser e é
Só um jumento pra descrer da sua fé
No monumento escrevi no rodapé:
Liberté, Fraternité, Igarité!

 

[do capítulo São Linguadura de Igarité da Hagiografia poética do Serestão.
Muraci Calandra, Canindé, 1973]