O que vi no tempo em que os bichos falavam

Folheto do cordelista primo e máximo Leandro Gomes de Barros (1865-1918)

 

Vi uma aranha dentista
mocó tocando guitarra
carneiros fazendo farra
um pinto capitalista
ostra doente da vista

Vi um teiú escrevendo
um camaleão cantando
uma raposa bordando
uma tacaca tecendo
um burro com um livro lendo
um sapo fazendo telha
vi mais uma rã vermelha
trabalhando num teçume
vi um tatu no curtume
cortando couro de abelha

Vi um lacrau enfermeiro
urubu feito marchante
vi um siri despachante
vi um pavão sapateiro
um timbu velho ferreiro
vi uma pulga tocando
uma preguiça dançando
um guará fazendo covos
dois grilos batendo ovos
e um jabuti cozinhando

Vi um mosquito valente
promotor advogado
com um pelotão formado
do batalhão Tirandente’
a muriçoca na frente
dizendo «a cabra não pode»
depois amarrou o bode
que estava no campo nu
mandou prender o muçum
por ter raspado o bigode

Vi lesma remar canoa
peiú mestrando um navio
sulcando as águas de um rio
saltando de popa a proa
no saltar de uma camboa
quando viu ficou cismado
no fundo de um valado
um caranguejo ainda moço
com a corda no pescoço
tinha morrido enforcado

Vi mosca batendo sola
vi pium fazendo lata
vi goiamum de gravata
e a cabra jogando bola
coelho tocando viola
catita soprando um buso
jiboia fazendo fuso
cutia num desempate
vi besouro alfaiate
cortando roupa de uso

Vi um cachorro copeiro
vi saúva agricultora
vi cascavel professora
vi gafanhoto caixeiro
vi mucurana barbeiro
vi urso vendendo trapo
lagarta deu um sopapo
chamando tudo de canalha
vi imbuá de navalha
fazendo a barba de um sapo

Vi um rato fogueteiro
de sócio mais um jaguar
vi papa-vento mandar
na rua trocar dinheiro
carrapato-rodoleiro
contando muita bravura
vi mais uma tanajura
trabalhando no roçado
percevejo namorado
discutindo a formosura

Vi da venta dum mucuim
saírem dois bois urrando
adiante estavam brigando
por um talo de capim
depois chegou um saguim
fazendo careta à gente
caiu e quebrou um dente
bem na biqueira da casa
o zabelê bateu asa
depois voou contente

Vi o ronco do nambu
o zuar da jandaíra
o preá na macambira
na serra grita o jacu
no riacho o cururu
o peixe folga no rio
o veado no sombrio
o punaré no penhasco
o peba no carrasco
o bola no baixio

Vi um cágado de muleta
pedindo esmola na rua
vi também uma perua
tocando numa corneta
vi caxito com luneta
apostando uma carreira
vi gia fazendo feira
um pitu cantandor
jaburu feito doutor
uma onça cigarreira

Vi um calanero enxerido
pedir moça pra casar
bacurau jogando bilhar
vi um morcego despido
vi um camarão sabido
estudando português
um touro de pince-nez
uma barata donzela
tinha quebrado a costela
vi águia de cachené

Vi uma aranha dentista
mocó tocando guitarra
carneiros fazendo farra
um pinto capitalista
ostra doente da vista
vi também um periquito
amamentando um cabrito
avestruz fazendo renda
a lontra numa contenda
copiando um manuscrito

Eu vi um gato rezando
um jacaré empregado
um cavalo embriagado
boas bebidas tomando
vi um lagarto ressonando,
numa vagem de feijão,
o ganso numa questão
atirar de carabina
seriema de botina
piolho de cinturão

Vi um capão descansando
vi um jumento formado
vi um guabiru casado
sua esposa beijando
vi uma cobra fumando
uma coruja sorrindo
eu vi um tetéu dormindo
vi um socó jogador
vi um gavião senador
no Senado discutindo

Vi pichilinga chorando
por estar no caritó
vi zebra botando pó
vi uma aranha engomando
vi um tubarão pescando
sentado numa jangada
uma sardinha enrascada
meteu a pique um navio
vi a traíra com frio
numa toalha embrulhada

Eu vi um papa-capim
apitando num canudo
um porco-espinho pançudo
vi também um guaxinim
brigando mais o quati
mangangá chegou ali
levou tudo pra cadeia
vi um tucano na peia
porque beijou bem-te-vi

Vi a ossada de um gôgo
dentro de uma feijoada
vi papa-vento enroscada
botando feijão no fogo
vi uma tigre no jogo
depenando uma galinha
vi xexéu almofadinha
com pó de arroz e carmim
também vi um maruim
feito sargento de linha

Vi aruá feito ourives
borboleta ama-de-leite
vi leão vendendo azeite
tucandeira detetive
ao ver grande susto tive
lagartixa melindrosa
cortando um botão de rosa
pra botar na cabeleira
vi cigarra costureira
toda contente e formosa

Vi papagaio juiz
defendendo uma questão
vi um cavalo do cão
montado numa perdiz
eu também vi um coacriz
vendo fita de cinema
a pantera mais a ema
estavam dançando valsa
vi um caçote com calça
subindo numa jurema

Vi elefante fardado
comandando um batalhão
um galo vendendo pão
um porco muito suado
um jaçanã deputado
um cavalo na ressaca
um macaco de casaca
namorando uma semôa
javali cantando lôa
lebre batendo matraca

Vi beija-flor num salão
estudando medicina
uma formiga franzina
se tratando no sertão
era dia de eleição
punaré tinha votado
jundiá chegou vexado
soluçando constrangido
por ter um pato morrido
dentro do rio afogado