O povo na cruz

Poema de 1907 de Leandro Gomes de Barros (1865-1918),
patrono da cadeira número um da Academia Brasileira de Literatura de Cordel

 

Alerta, Brasil, alerta!
Desperta do sono pesado
Abre os olhos que verás
Teu povo sacrificado
Entre peste, fome e guerra
De tudo sobressaltado

O brasileiro hoje em dia
Luta até para morrer
Porque depois dele morto
Tudo nele quer roer
De forma que até a terra
Não acha mais que comer

A fome come-lhe a carne
O trabalho gasta o braço
Depois o governo o pega
Há de o partir a compasso
Alfândega, Estado, Intendência
Cada um tira um pedaço

O médico cobra a receita
O boticário a meizinha
O juiz confisca logo
Alguns bens se acaso tinha
Inda ficando uma parte
Diz a Intendência1, que é minha

Assim morre o brasileiro
Como o bode exposto à chuva
Tem por direito o imposto
E palmatória por luva
Família só herda dele
Nome de órfão e viúva

Morrendo um pobre diabo
Se acaso deixar dinheiro
Ainda deixando um filho
Este não é seu herdeiro
Só herda dele o juiz
O escrivão, o coveiro

E o governo bem vê
Nossos martírios cruéis
Só faz é nos botar selo
Da cabeça até os pés
Diz «de manhã morre um
Ao meio-dia nascem dez»

E grita «vá o imposto!
Morra quem estiver doente
Morrem cem nascem mil
O Brasil tem muita gente
O tempo vai muito bom
Toca o banquete pra frente!»

O governo estraga o pão
Dizendo «não custou nada
Dinheiro nasce no mato
Acha-se em qualquer estrada»
Vendo o mendigo morrer
Como fosse ao pé da escada

Porque o pobre infeliz
A quem a fome deu cabo
Diz o prefeito «morreu,
pode levar o diabo»
Diz o coveiro: «de graça
A sepultura eu não abro»

São essas as garantias
Que competem ao brasileiro
Ter fome em cima do pão
Ser pobre havendo dinheiro
Ser mandado pelos servos
Isso causa desespero

Como vive o brasileiro
Com três impostos a pagar
Um corpo com três feridas
Como assim pode escapar?
Um ser escravo de três
Se acaba de trabalhar

São tantas as perseguições
Dos impostos que se paga
Que um fiscal pra nação
Não pode haver maior praga
É como bala de rifle:
Onde vai fura ou esmaga

Não há mesmo quem resista
Estes impostos de agora
Diz o governo que tem
Quer morra tudo em uma hora?
Quando o norte se acabar
Eu boto o bagaço pra fora

E se não houver inverno
Como o povo todo espera
De Pernambuco não fica
Nem os esteios da tapera
Parahyba fica em nada
Rio Grande desespera

O Rio de Janeiro hoje
Parece um grande condado
Ri-se o rico, chora o pobre
Lamentando o seu estado
Diz o governo «eu vou bem
Tudo vai do meu agrado»

São Paulo para o governo
É o primor da criação
Eu acho parecido
Com o sítio da maldição
Aquele que Judas comprou
Com o ouro da traição

Filho de chefe político
Inda nem bem é gerado
Diz o pai «minha mulher
Já tem no ventre um soldado
Mas antes de sentar praça
Eu o quero reformado»

Assim antes de ser casa
Já podia ser tapera
Ou cajú antes da fruta
Já a semente prospera
Ou é raça de pescada
Que antes de ser já era

Nosso Pernambuco velho
Há anos anda caipora
Vendo-se a hora e o instante
Que a capital vai embora
O governo está marcando
Em botar-lhe o bagaço fora

Parahyba, coitadinha!
Já perdeu toda esperança
É mesmo que uma boneca
Nas unhas de uma criança
Faz toda súplica ao governo
Mas suplica e nada alcança

Em que hoje está virado
O país de Santa Cruz!
Está igual a mariposa
No calor do fogo ou luz
O brasileiro é um verme
O estrangeiro é mastruz

O Brasil hoje só presta
Para inglês, padre e soldado
Médicos, feiticeiros e brabos
O mais vive acabrunhado
De forma que fica o mundo
Por estes só situado

O rico matando o pobre
Nem se recolhe a prisão
Diz logo o advogado
«Matou com muita razão»
Se passa um mês na cadeia
Tem a gratificação