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Para salvar-nos dos apuros da comédia (ou para melhor problematizá-los) mais qualificado cabra do que Dante não existe, e isso devido não só à Sua, mas a duas circunstâncias particulares: no tempo de Dante [1] o sentido popular de “comédia” não se esgotava, como no nosso, em uma obra essencialmente cômica, e ainda assim [2] foi motivo de escândalo e de perplexidade entre os seus contemporâneos a escolha, por parte do autor, do título “Comédia” para uma obra daquele calibre, com aquele teor, escrita com aquele grau de maestria e de ambição.
Porque na era medieval o que se sabia de certo é que a comédia denotava uma obra literária com algo de inferior: por vezes a linguagem, por vezes o valor literário, quase sempre o nivel social e intelectual dos protagonistas.
Era corrente a divisão dos gêneros literários em três categorias – tragédia, comédia e elegia, – a partir das obras de Virgílio (a Eneida, as Geórgicas e as Bucólicas). Nesse pódio a tragédia ocupava sempre o primeiro lugar; dependendo de quem estava falando, a comédia chegava em segundo lugar – ou terceiro.
Nada disso Dante, que elegeu Virgílio como seu guia, tinha como ignorar. No seu De vulgari eloquentia (escrito entre 1302 e il 1305, portanto antes de se embrenhar na Comédia) ele adota uma classificação semelhante:
No que diz respeito aos assuntos que podem representar matéria de poesia, devemos ser capazes de distinguir se se trata de cantá-los de forma trágica, cômica ou elegíaca. Com tragédia queremos denotar o estilo superior, com comédia aquele inferior, e com elegia o estilo dos infelizes. Se os argumentos escolhidos ocorrem ser cantados de forma trágica, é necessário utilizar o vernáculo de caráter ilustre, e consequentemente a forma de canção. Se ao contrário estamos no nível do cômico, utilizaremos em certos casos o vernáculo mediano, em outros o vernáculo inferior. Se estamos por fim no nível do elegíaco, convém usar exclusivamente o vernáculo inferior.
Convém lembrar que em De vulgari eloquentia/A eloquência da língua vernacular Dante estava fazendo jogo duplo: ele escrevia em latim, mas seu tema era demonstrar que o vernáculo (a língua falada pelo povo e que daria origem ao italiano) tinha cacife para ser usado para fins literários num nível (quase) comparável à língua de Virgílio.
Por bem mais de mil anos, naturalmente, o latim tinha sido a língua exclusiva da erudição no ocidente. Quem quisesse escrever teologia, ciência ou literatura não tinha alternativa: ou escrevia em latim ou corria o risco de não ser levado a sério, e por mil anos esse risco praticamente ninguém quis correr.
Na pátria do latim o primeiro a ousar escrever verdadeira literatura usando a língua falada pelo povo foi, veja que coisa bonita, ninguém menos do que São Francisco (1181-1226). Graças a essa sua transgressão, quem não entendia uma palavra da missa em latim podia agora entender quando ouvia:
Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.
E
Tu sei il santissimo padre mio, mio Re e mio Dio;
Vieni in mio soccorso, Signore, Dio della mia salvezza
– que, sem contar algum arcaísmo ortográfico e à distância de oitocentos anos, todo italiano dos nossos dias pode entender e passar adiante (e muita gente de fala portuguesa pode com alguma facilidade decifrar).
No tempo de Dante oitenta anos tinham passado desde a intervenção revolucionária de Francisco, mas os defensores reacionários do latim, os guardiões da barragem, lutavam com unhas e dentes para manter o acesso à literatura fechado ao vernáculo – e ao povo que vivia imerso nele.
Nesse contexto, Dante levantou De vulgari eloquentia como um manifesto em defesa da língua viva da experiência contra o ataque dos zumbis da língua latina.
Motivo também pelo qual decidiu redigir o seu manifesto em latim: de um lado Dante não tinha como ignorar a delícia do paradoxo, por outro não queria correr o risco de que seus argumentos em favor do vernáculo não fossem levados a sério.
E seu grande argumento é que nem todo vernáculo nasce igual: nem toda língua falada na experiência é necessariamente de qualidade inferior. Fazendo (e traduzindo para o latim) uma retrospectiva da poesia em língua italiana de um extremo a outro da bota, Dante argumenta que não existe só o vernáculo da feira ou das praças, mas também aquele usado de modo sofisticado e articulado em contextos literários.
Trata-se do vernáculo de caráter ilustre1, aquele cuja eloquência seu tratado propõe-se a demonstrar. A língua vernacular ilustre, argumenta Dante, é capaz de elevar e de iluminar (prerrogativas que até aquele momento se consideravam exclusivas da lingua latina), e nisso pode ser usada legitimamente na academia, na corte e na composição do mais elevado dos gêneros literários: a tragédia.
Dante nunca concluiu os quatro volumes que tinha planejado para De vulgari eloquentia2, e graças a Deus por essa falta. Sua maior, mais eloquente e mais devastadora defesa do vernáculo foi a obra cardinal com a qual dividiu em antes e depois a cultura ocidental. A obra que decidiu – ignorando tudo que tinha escrito sobre o regime de exclusividade entre a língua vernacular ilustre e a tragédia – chamar simplesmente Comédia.
- Se a tragédia é superior à comédia
- O povo está falando