O Auto da Escassez

Caminhando pela cidade, depois de concluir o recenseamento do uso anual da neve de algodão1, vi dois atores de rua encenando na pracinha do hotel Guariba o Auto da Escassez.

O urutau, fazendo a ronda antes do nascer do sol pela orla da mata, encontra o diabo nu, cercado de iraras e capivaras, tentando cobrir de argila o vermelho da pele.

«Jesus acaba de nascer, estou mal, esse animal», falou o ator bigodudo que fazia a parte do diabo, e tocou a ponta dos chifres de cera como se doessem. «O bicho-homem não quis saber do meu amor, e com a rejeição dessa peste acabou que eu também rejeito tudo que tem: agora eu detesto. Que me interessa esse diacho, sem a minha fêmea e o meu macho? Só me resta agora ir à forra, jogando veneno nessa porra. Ninguém, olhe, me segure! Diabo velho, se apure!

E continuou a fazer de conta que se cobria de argila.

«O mundo não é fácil de envenenar desse jeito», disse a atriz que fazia o urutau, «e basta: se dê o respeito. No mundo todo tem um bicho só capaz de entornar veneno no mundo, e é o próprio homem do teu verso, o homem que inventou a bondade no universo.

«Então eu não sei», falou o diabo todo ouriçado, «se não foi essa peste inventando a bondade que me fez apaixonar de verdade? Deus eu diabo nunca respeitei, mas no homem encontrei alguém mais ereto do que eu.

Sorriu arreliado, fazendo menção de puxar pela mão um homem que estava passando.

«Arre égua, deixa o homem em paz», falou o urutau e segurou o diabo pelo pulso, «que amor coalhado não tem quem não conheça. O cabra ali que passou, já sofreu disso à beça. Esquece a ideia de gorar o mundo, esquece esse amor de perdição, que o ser humano é bom e não vai te dar satisfação.

«Então eu não sei? Inventei comigo um antídoto contra a bondade, e o remédio chama ESCASSEZ; o homem esfola o vizinho e volta pro meu braço, ou desanda tudo de vez.

«Ô diacho, homem, perdeu a memória? Vossia já tentou essa história, não já? Eu já lhe disse e vou repetir, quando falta a mistura é que o cabra aprende a dividir. Ideia lesa essa sua, digo a verdade, que foi por conta da escassez que o homem inventou a bondade.

«Essa foi a primeira edição», falou o diabo, ajeitando o topete com a argila. «O angu da escassez foi revisto e reempacotado. Digo ao homem um, que não tem pra todo mundo; dois, que precisa decidir direitinho quem fica com o quê. Paro por aí que basta, e fico vendo o pau comer.

«Começando assim, eu duvido da começão.

«Tu duvida porque é urutau, e urutau é otário. Mas mais otário que vossia tem, e é otário bicho-homem.

E fez a ronda sorrindo e provocando, apontando para o povo que tinha feito roda para apreciar. Apontou e piscou também para mim, coberto de razão.

«Otário urutau que fosse», disse a atriz, e puxou gentilmente da beira para o meio da roda um sujeito muito sorridente e muito tímido, «quero ver vossia convencer o ser humano que não tem pra todo mundo, se todo mundo que é vivo, se vive é porque até ali se tem provido?

«E também sofrido», falou o diabo, «tudo que não se tem mas se tem querido». Ele indicou um cenário no ar com as duas mãos abertas e alinhadas, e ao sujeito disse: «Já pensou num namoro? Já pensou todo aquele ouro?

Nesse meio tempo o urutau vestiu o voluntário, que se chamava Misael, com um avental de folhas de jornal coladas com fita, que deixava livre os braços mas cobria do colarinho até o joelho.

«Olha, penso pra um lado, encardido e coberto de notícia ruim», disse o diabo avaliando, «não sei como fui me apaixonar por esse coitado.

«Eu sei cozinhar», falou sorrindo Misael.

«É, e passa a ferro também», disse o diabo fingindo chateação, «e me enche de chifre. Vossia um minuto se aquiete e não atravanque a leitura.

«Aqui diz que aumenta o imposto», disse o urutau e apontou para o coração.

«Aqui diz que estão desmatando», disse o diabo e apontou para a virilha.

«Aqui diz que se morre de cirrose com a cachaça», disse o urutau e apontou para o fígado.

«Aqui diz que subiu o preço do Viagra», disse o diabo, levantando o braço do voluntário para ler uma notícia por baixo e deixando cair.

Cinco minutos depois, tendo entrevistado Misael, o urutau tinha desenhado com um lápis de carvão sobre o avental de jornal um pênis sorridente deitado numa rede na altura do pênis; uma galinha inteira e um prato de batata frita cobrindo o estômago; dois ou três amigos dentro do coração.

«E se eu le dissesse uma novidade», disse o diabo, pegando a força o lápis e metendo na boca como se fosse charuto: «que não tem pra todo mundo?

«É lorota», falou Misael, sorrindo sempre, e apontou para os desenhos no avental.

«Tu Misael, fosse rico, acreditaria em mim quando aviso da escassez. Acredite em mim um tiquinho, e lhe dou o dobro do dinheiro no fim do mês.

O diabo desenhou então cédulas de dinheiro sobre o avental, na altura do bolso da calça, mas Misael fez que não com a cabeça.

«Ah peixe-boi, fica demonstrada a escassez nesse país! Deixe eu le tirar do couro, faço essa gentileza, o peso do prazer todo que vossia não quis.

O diabo então rasgou com muito jeito e largou na calçada uma terça parte do avental de Misael, a faixa que ficava abaixo da cintura. O urutau recolheu e ficou admirando os desenhos.

«A segunda regra da escassez», disse o diabo, mordendo feito gangster o seu charuto mas explicando tudo de modo muito razoável, «é que, não tendo pra todo mundo, tem que ver direitinho quem fica com o quê. Nós os ricos e poderosos fizemos uma reunião e decidimos que vossia, Misael, não é fominha quanto baste, não é puxa-saco quanto baste, não é violento quanto baste para ter o bucho cheio do bom e do melhor. Mas decidimos liberalmente dar a vossia uma chance de ouro: seja fominha quanto baste, seja puxa-saco quanto baste, seja violento quanto baste, e nós le daremos entrada secundária no clube, com direito a olhar de longe e a rir das nossas piadas. Decidimos nós quanto baste que você dê risada.

Desenhou no fim uma chave num lado do avental e esperou uma resposta, mas Misael fez sinal que não com a cabeça.

Sem aviso e com grande violência, o diabo arrancou num gesto a metade inferior do que tinha restado do avental, a parte que cobria a barriga, deixando só a parte do cima com o desenho do coração.

Pisou e chutou para longe o pedaço rasgado, para que o urutau não pudesse juntar, e ficou fazendo a ronda fingindo irritação.

«Para quem se sentia coberto, a coisa parece se rarefez. Ã? Deixa eu le ensinar a vossia, meu santo, a coisa mais concreta sobre a escassez: as coisas que vossia passa a vida não desejando, os ricos espertos passam a vida acumulando pra si. Sabe o que quer dizer? A escassez que não existia, o rico trouxe pra o Brasil. Sabe o que le resta fazer, peixe-boi? Pra não morrer de fome, carcomido pela escassez, le cabe fazer igualzinho ao que o rico fez: uma vez inventada a cobiça não tem jeito, todo mundo vira freguês. Le toca pensar só no umbigo, le toca esquecer cada amigo –

Nesse momento, quando o diabo colocou-lhe a mão sobre o coração e estava para arrancar a última porção do avental, Misael segurou forte a mão do ator pelo pulso e parou de sorrir por um segundo ou dois.

«Mas com o cascais que despejo é esse?», o diabo deu um passo para trás fingindo indignação, «Alto lá que esse auto tem roteiro! Está escrito na palma aqui da minha mão, é o papel de todo brasileiro! Leia o que diz o Concílio Europeu: a ESCASSEZ existe e vai existir; quem diz são eles, não eu, e que motivo que eles têm pra mentir? Leia o que diz o Estado americano: tem de trocar de carro cada ano! Leia o que se diz em Araripe: falta minério para os chips! Leia o que diz quem não erra: a escassez justifica a guerra!

«Olhai os lírios do campo», disse Misael, «que não tecem e não fazem porra nenhuma.

Nesse momento a encenação, que pode naturalmente terminar de várias maneiras dependendo da interação com o público, se desfez por si mesma e os três no meio caíram na risada, a farsa desmoronando em catarse debaixo do peso do ridículo. Aplaudimos, e mais do que três se abraçaram.

Quando passei de volta estavam os atores, Misael e mais alguns conversando no bar. O ator que fazia o papel do diabo estava usando a parte de cima do avental, com o desenho do coração e dos amigos de Misael, e eu passando fez sinal com a mão de juntar-me a eles que me oferecia um café.