O amor mais puro e mais cringe

Esta entrada é a parte 1 de 2 da série O amor do bem e do mal

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Na ideia de São Côro de Minância, o santo que se despiu no concílio de Perosna em 12331, o problema primo e máximo do ser humano não é o quanto somos diferentes de Deus, mas o quanto somos semelhantes a ele.

A alma humana (como aquela divina), sendo intercambiável com o amor mais puro e mais cringe, ama não só todos os seres mas todas as coisas, tudo que existe, mesmo as coisas mais horrendas e moralmente reprováveis – mesmo aquelas que nunca teria como pessoalmente imitar ou aprovar.

Na condição humana vem portanto embutido esse horror portátil, a consciência de que no secreto profundo amamos as coisas sem exceção – não só Rossini, Dante e cuzcuz com feijão verde, como é justo que seja, mas (como Deus) amamos também todos os assassinatos, todas as corrupções, todos os genocídios, todas as injustiças, todas as perversidades, todas as torturas, todas as defraudações. Essas coisas que Deus de modo algum aprova, de modo algum endossa, de modo algum justifica, de modo algum recomenda, ele ainda assim ama, porque [1] o seu amor diz respeito ao que diz respeito ao ser humano, [2] cada uma dessas coisas fala de e ao ser humano, e [3] o amor não só não admite exceções: ele não admite exclusões.

Quando um ente querido morre, amamos paradoxalmente a sua morte, porque o nosso amor não diz respeito à justiça ou à felicidade dos acontecimentos: nosso amor reguarda tudo que acontece, diz respeito ou associamos à pessoa amada.

Como todas as injustiças dizem respeito aos seres humanos; como todas as tragédias envolvem memórias, lealdades e heroísmos, e como nada que é humano nos é estranho (Terêncio), é ao mesmo tempo inevitável e terrível que seja assim.

Deus é amor e não tem como não amar o mais reprovável e impenitente dos pecadores. Está na natureza de Jesus amar os inimigos, está no seu caráter mais profundo perdoar os que injustamente o condenam, torturam e assassinam. Diante do horror absoluto, a invariável oferta divina é o amor: o abraço dado a quem por nada neste mundo o mereceria, no mais terrível e indesejável dos contextos.

Isso se explica em que tudo que existe deve ser amado, mesmo aquilo que é o contrário de amável – não porque existe virtude na perversidade ou na crueldade, mas porque só existe virtude no amor. Nada pode passar por este universo sem conhecer o amor; nada pode ficar para trás.

Para Côro de Minância, nossa perdição está em que temos em comum com Deus essa sua característica – amamos todas as coisas, mesmo gente perversa e suas perversidades, – sem ter em comum com a divindade a maturidade emocional e a firmeza espiritual para lidar com esse fardo.

De modo mais ou menos consciente amamos Hitler, amamos Caim, amamos Judas, amamos Iago, amamos Torquemada; amamos cada violência, cada desastre natural, cada ataque terrorista. A resposta humana mais comum a essa terrível herança divina – herança que o santo chama de “o amor do bem e do mal” – é o recalque ou a repressão, mas a repressão não é de modo algum um mecanismo à prova de falhas. De fato, é raramente que conseguimos esconder o fascínio que exercem sobre nós cada um desses horrores e personagens.

«O mais virtuoso dentre nós conhece o abismo2 e o ama,» teria dito São Côro aos discípulos que nunca quis, «e aqui reside a ruína nossa e a nossa brecha de redenção».