No quarto do Hotel Barbalha o italiano recebe injunção de Arievaldo
Arievaldo disse:
«Então olhe, italiano minha flor, que a tramela de suagença que não me fecha são duas: uma, a bagagem de vossia desaparece no meio da praça com dentro toda a tralha sua – e vossia fica achando que foi alguém que roubou? Que raio de lógica castanha é essa? De explicação descarrilada o universo está cheio, e o gado tem mais de um rumo só. Segunda, se quemseja tivesse ainda que fosse roubado a valige sua com tudo dentro. vossia crê de fato ter perdido alguma coisa? Na Itália as coisas não terminam que voltam pra mão de quem perdeu? Na bota o povo é malfeito por acaso que carece pra viver daquilo que não le vem já colado no corpo? O povo de Roma perde tempo mais procurando juntar ou procurando se desfazer?
«Procurando juntar, sem dúvida de nenhuma serra», o italiano disse, «isso desde que o mundo é mundo. Ou por o menos buscando reaver aquilo que perdeu, como estou fazendo e vossia me minando por baixo.
«Arre égua se agora não le apresento um por meio desta, que o que diz vossia por aqui se lê só em livro e vale então lá só para as suas partes. Aqui na terra caboclo faz o que pode e o que não pode pra passar adiante aquilo que tem, e corre diabo mais que da cruz daquilo que foi dele já. Ano passado amigo nosso Douzemar de Campina Grande foi bolir no Rio de Janeiro e teve não demorou que voltar a custa de meia dúzia de proprietários de banco que le corriam atrás com papel pra assinar, daquilo que queriam le dar.
«Dar a ele que coisa? Dinheiro?
«O banco, italiano, banqueiro queria dar a Douzemar o banco, cada um o dele.
«Não tem, Arievaldo, como ser verdade essa história.
«Imagine se perco lustro com mentira desse qualume. Vossia é, e não o povo de cá quem tem de se aclimatar a esse frevo: faça aí a tatuagem, nesta terra o desadouro não é dar: é receber. Buongiorno, italiano, então não lhe largaram na mão um pandeiro aquele ali nos primeiros dez minutos de vossia aqui na praça? Então já não me servi eu de todos menos um dos biscoitos que lhe passou Jururema naquele pano? Faça reparo, italiano, vossia não deixe esse sua fraqueza vazar, não toque o tringuilim. Se corre aí fora a fama sua de aceitador, vejo já o povo todo da cidade atucalhado no meio-fio esperando a vez na fila com a feira pra lhe dar.
«Arievaldo, faça o favor.
«Vossia dá risada, mas ver eu vi o destino de muito europeu aceitador nessa mesma rua. Bote sentido suagença, ou a mesma coxia lhe aguarda. Vossia tranquilo, reclinado e no macio, abre o olho o meio-dia, toca leve a campainha e dessa cama ao seu redor é suplicante e babador, é mangaio, é mariana, é só comenda e doador. É padre que elogia, é crente com louvor: esse dá um chocolate, aquele um camafeu; sicrano lhe empurra um faqueiro, fulano desliza um troféu. Assine aqui a propriedade, onde eu deixo esse chapéu? Olhe aqui estão as chaves, vai com o outro este mundéu? Ela traz um jegue, ele um diabo que o carregue; ela uma mula, ele uma pedra da lua. E vossia, de uma pra outra hora, vê-se em todo lado incumbido e arrodeado, fornecido e arregalado de lembrança e de favor, de galinha, de pintado, de garrafa, de brocado, de candeeiro e marinado, de balaio e bibelô, rapadura e brigadeiro, de bugio e de jaú, de esteira, de trocado, de baunilha e de café. Le rodeiam, le lambuzam, de escritura e mobiliário, de biscoito e de rosário, de tecido e plantação, de carimbo e mata-burro, de carranca e coçador, de bodoque e de cortina, de imagem e de andor, de consolo e de aquarela, de tapete e codorniz, de umburana, cajuína, de bobina e de verniz. Sem fiado, tudo agrado, todo o dia assediado de arapuca, correame, de madeira e de cetim, de araruta, de relíquia, de cueca e de pequi, de choriço, tabuada, de coalhada e de farinha, de jangada e de coité, de pitomba e sapoti, de cruzeiro e canivete, de jerume e de lençol, de cabide e de cordel, de moquiço e de enxó. Atochado, soterrado, sitiado em todo lado – BASTA, basta, basta! Seja ovo eu devolvo, seja cadarço eu ressarço! Não me venham, vão-se embora, quem deu ordem de trazer? Chega disso, minha nossa, cartorário, pelo amor! Abadessa, minha filha, feche a porta a cadeado, feche a porta a cadeado! De enxerido, impertinente, intrometido, juizado, porrinhante, requerente, donatário, eu não quero mais saber! Fora, fora, fora, fora, que eu não quero receber. A enxerido, impertinente, intrometido, juizado, porrinhante, requerente, donatário, pleiteado de meimundo, vuco-vuco, caboclada, o que eu digo é: se fuder! Minha santa, nove horas, o que tinha deu pra dar! Tomem tento, vão pra casa, basta basta esse fuá. Não se aguenta, não me tenta, não me venha azucrinar. Basta, basta, basta, BASTA – basta basta esse fuá!
«Presto, presto, giù da lì, o italiano disse a Arievaldo, que tinha trepado na imagem de Lozia do Cangaço fosse King Kong naquele filme e lhe ajudou a descer.