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Tudo isso está mais ou menos explicado na tradição transmitida por Munhaça de Bê, conterrâneo e comparsa de São Côro, nos oito cantos do Livro das Madrugadas Todas. Porém dessa tese a mais famosa interpretação só veio à luz quinhentos anos depois e no hemisfério errado, pela mão do bispo Oronzo Filomarino, conterrâneo e comparsa do filósofo napolitano Giambattista Vico, que por sua vez despiu publicamente (figurativamente, infelizmente) Descartes.
Como apresentado por São Côro de Minância, o amor do bem e do mal parece limitar-se a problema teológico ou de angústia existencial. Na versão de Oronzo Filomarino, a questão tem para os indivíduos consequências profundas que hoje chamaríamos de psicológicas. Não podemos, insiste o bispo, ignorar o papel que o amor divinamente herdado por todas as coisas – particularmente por aquelas que sentimos ser nosso dever reprovar – assume na formação do caráter e da personalidade.
Segundo o bispo napolitano, as respostas humanas ao amor do bem e do mal são essencialmente1 duas, cada uma problemática a seu modo: a reação do escuro-iluminado e reação do claro-escuro.
O escuro-iluminado
A primeira e mais natural2 resposta ao problema de amar igualmente o bem e o mal é abandonar-se ao mal como inevitável.
Quem escolhe essa via segue um reto raciocínio: se até mesmo a perversidade pode ser amada convém amá-la; ainda porque, se você pessoalmente não amar o mal, outra pessoa vai acabar amando – isso para o seu grande risco e prejuízo pessoal.
Quem se abandona desse modo à inevitabilidade do mal Oronzo Filomarino chama de escuro-iluminado (oscuro-illuminato): escuro porque escolhe a via da escuridão, iluminado porque o faz convencido de que é a coisa mais racional a se fazer.
O escuro-iluminado é tribal, pragmático e – diríamos hoje, fascista. Abraçar o mal, na sua visão pessoal das coisas, não representa realmente uma dilema moral: trata-se simplesmente de pragmatismo, de sensatez e de colocar em primeiro lugar os interesses pessoais/familiares/tribais. Dilema seria só se fosse concebível não escolher o mal – se fosse concebível não colocar em primeiro lugar o bem-estar pessoal e aquele da tribo. Em algum recôndito o escuro-iluminado pode até desejar fazer o bem, mas não foi ele quem escreveu as regras. Num mundo em que o proibido é permitido, a coisa mais infantil, arriscada e contraproducente seria tentar resistir ao mal – e quem o faz é
O claro-escuro
A segunda resposta à condição de amar tanto o bem quanto o mal é a instância moral: rejeitar abertamente a maldade, discernir a maldade e denunciá-la em todas as suas formas.
Podemos por divina herança estar condenados a amar com o bem o mal, mas não somos obrigados a aprová-lo; na verdade, nosso dever é apontar o mal continuamente, explicar aos quatro ventos a sua natureza destrutiva, elencar os seus riscos e explicitar as suas consequências.
Quem segue esse quesito Filomarino chama de claro-escuro (chiaroscuro): claro porque declara a sua preferência pela virtude, escuro porque sua posição é determinada pelo mal, ainda que se trate da sua rejeição.
O claro-escuro é rigoroso, crítico e – diríamos hoje, militante. Ele está convencido que sua postura é definida pela virtude, mas o que o define é a sua sistemática busca pelo erro nos outros. Sua rejeição do mal é frequentemente retórica e parcial, mas ele não tem como saber: a prática de reconhecer e apontar a maldade sendo a sua grande credencial de virtude, ele não ousaria colocá-lo sob escrutínio.
Filomarino, surpreendentemente, condena as duas posições. É particularmente fácil reprovar o fascista/escuro-iluminado, mas o bispo está mais interessado em denunciar o apontador de erros/claro-escuro, que é a variante mais insidiosa – e, na opinião dele, aquela mais fundamentada no autoengano.
O claro-escuro se engana ao pensar que apontar o mal possa beneficiar o fascista ou impulsioná-lo a uma mudança de atitude; engana-se ao pensar que denunciar o mal equivale a exorcizá-lo da sua própria pessoa; engana-se ao pensar que apontar com o acerto o erro nos outros possa dar alguma indicação da familiaridade dele mesmo com a virtude.
Isso porque no claro-escuro, por mais que passe a vida tentando a fazer da reprovação do mal a sua declaração de identidade, o mal não é realmente rejeitado: ele é meramente recalcado ou reprimido, que é o máximo que um ser humano pode fazer, e talvez a coisa pior.
Não só isso: ao concentrar os seus esforços na denúncia e na condenação do erro, o claro-escuro trabalha para render sem efeito os esforços da própria divindade, a qual (como haviam intuído ao longo dos séculos teólogos tanto cristãos quanto judeus) teve no ato de criar a humanidade de temperar o seu atributo de Juízo Severo com uma nova concessão, aquela da Graça/Misericórdia.
Porque se Deus concentrasse os esforços dele na denúncia e na condenação do erro – se desse vazão sem o tempero da misericórdia ao seu atributo de Juízo Severo – não haveria quem fosse poupado do açoite (para citar Hamlet, e por que não).
De tudo isso, afirma Filomarino, sabia São Côro quando disse:
Ninguém se ofende mais do que quem é bom
e isso está certo não
- O amor mais puro e mais cringe
- Claros-escuros e escuros-iluminados