Amor Divino Impenitente e Triunfante

Esta entrada é a parte 3 de 3 da série O amor do bem e do mal

O erro paradoxal do cristianismo é não ter entendido a mensagem consistente de Jesus: mais grave do que pecar é condenar o pecado.

George Keith, Amore Divino Impenitente e Trionfante. Giulio Einaudi Editore, Turim, 2016]

 

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Apesar da posição antianglicana que se estendia aos católicos, os primeiros quakers tinham grande estima por São Côro e São Francisco, e pelo mesmo motivo: tinham se despido publicamente, o que se interpretava como rejeição às instituições e como desapego aos bens materiais.

Com respeito à teologia de São Côro, menos conhecida e mais ambiciosa do que a de Oronzo Filomarino é a interpretação do escocês George Keith (1638-1716) em Amor Divino Impenitente e Triunfante, tratado seu de 1675 (quando Filomarino tinha ainda 13 anos).

À sua nervosa biografia – presbiteriano de nascimento, convertido ao quaquerismo e teólogo militante da primeira geração do movimento, imigrante na América do Norte, agrimensor, diretor de escola, proto-abolicionista, missionário e, de 1700 até o fim da vida, convertido e consagrado sacerdote na igreja anglicana, dentro da qual dedicou-se a hostilizar o movimento quaker que tinha ajudado a organizar, – Keith acrescentou a indignidade de ter escrito profusamente e com pouco brilho.

Gershom Scholem, que analisou Amor Divino Impenitente e Triunfante para determinar as suas raízes no misticismo e na cabala judaica, avançou a ideia de que o livro tenha sido na realidade obra (ou fortemente guiado pela mão) de Robert Barclay, amigo de Keith e autor reconhecidamente superior. A edição crítica bilíngue da editora italiana Einaudi não exatamente trabalha para desacreditar essa suposição, e o prefácio de Attilio Mastrocinque sugere que Barclay pode ter cedido a autoria ao amigo para proteger-se da acusação de heterodoxia.

Resta que tanto Keith quanto Barclay estavam naquele período fascinados pela cabala judaica como exposta pelo rabino Isaac Luria (1534-1572)1, particularmente a ideia de que o mal se beneficia da presença dos justos sobre a terra.

Na visão de Luria o mal é parasitário por excelência: ele se favorece da presença do bem e extrai dele sustento. A consequência paradoxal é que a existência de gente boa neste mundo fornece às forças do mal (hebraico קְלִיפּוֹת – Quelipót) uma fonte de energia a que de outra forma não teriam acesso.

Isso explica porque o mal é especialmente difícil de combater: quanto mais os justos se multiplicam no planeta, mais recursos Quelipót tem para usurpar em seu favor. Quanto mais se aproxima a vitória final da divindade mais laborioso se torna vencer os últimos metros, e incontáveis vezes a esfera do mal reforçada pela abundância do bem carregou a humanidade de volta ao ponto de partida. Scholem: «os estágios finais da restauração são, por esse motivo, aqueles mais difíceis».

 

De que modo os justos portadores da luz (na teologia quaker a luz representa invariavelmente uma influência positiva) têm o seu resplendor revertido em vantagem e sustento para as forças da maldade? O rabino Luria explica: as luzes em questão não neutralizaram em si mesmas o Juízo Severo, o atributo divino que se opõe à sua Misericórdia.

No misticismo judaico o Juízo Severo (hebraico דִּין – din), é tão perigoso e insidioso que até mesmo Deus teve de colocá-lo de lado para criar o mundo. Luria chega a sugerir que Deus criou o mundo com a finalidade de purificar-se do Juízo Severo dentro de si, de modo a poder identificar-se2 como Deus de Misericórdia (e não, como seria de se esperar, como Deus de poder ou de justiça).

Quer dizer que existem dois modos de se fomentar e satisfazer as forças da maldade: um através do pecado e outro, mais eficaz, através da condenação do pecado. George Keith ficou absolutamente deslumbrado diante dessa descoberta.

O justo obcecado em denunciar e condenar o erro dos pecadores acaba dando sustento à própria maldade – porque essa postura se fundamenta no Juízo Severo, a característica divina menos relevante no processo de redenção e aquela de que o próprio Deus decidiu tomar distância. A semelhança entre essa descrição e o conceito de claro-escuro de Oronzo Filomarino (que por certo nunca leu Isaac Luria) é notável.

Nesse contexto, e como diz no prefácio de Impenitente e Triunfante, o amor do bem e do mal de São Côro veio à memória de George Keith (e/ou Robert Barclay) diante desta única linha de Luria:

Se Deus é imutável, como estou certo que seja, como pode chegar a odiar qualquer uma de suas criaturas, uma vez que as amou?

Para São Côro, como vimos, muito do peso e das contradições da condição humana provém do fato de que o homem é semelhante a Deus no mais inesperado dos sentidos: como Deus, o ser humano é incapaz de não amar todas as coisas, mesmo aquelas ruins. George Keith, iluminado por Isaac Luria, concluiu que para ser de fato como Deus (e “completar o encargo do amor”) o ser humano deve seguir o percurso divino conforme descrito na cabala judaica: se é para exercitar à perfeição o amor, o Juízo Severo deve ser colocado de lado.

A tese central de Impenitente e triunfante é que a condição de amar todas as coisas – incluindo o pecado, a injustiça e o pecador, – concedida ou imposta por Deus a cada ser humano (conforme São Côro), – não é um fardo, mas consiste na própria divina missão. O amor é uma força irresistivelmente criativa, é potência restauradora; é motor perpétuo de reviravoltas, de conciliações e de possibilidades. Amar é não só participar da divindade e completar a obra da criação, é também reverter a Queda: «Deus, querendo restaurar todas as coisas, deu ao homem o dom de amar tudo que existe, todos que existem, tudo que acontece».

Como o amor não admite exclusões, o amor de nada serve e é tornado sem efeito se aliado à condenação: «Deus, querendo arrolar o ser humano na restauração de todas as coisas, deu ao homem o dom de amar (mesmo) aquilo que não é amável. O homem (seja então digno) da sacra bem-aventurança de amar aquilo que é proibido3: aquilo que é injusto, aquilo que é atroz, aquilo que é condenável, mas pode ser restaurado e tornado participante da redenção se o homem ousar não deitar sobre essas coisas a sua condenação».

O julgamento, insiste Keith, obstrui continuamente a obra criativa e restauradora do amor. É por isso que as luzes contaminadas pelo Juízo Severo, apesar do seu caráter de luzes4, acabam servindo de sustento às forças do mal. O amor quer a mudança, a condenação resiste. O amor quer a acolhida, a condenação quer a separação. O amor quer o perdão, a condenação que o acerto de contas. Obstruindo desse modo cada passo e objetivo da redenção, quem faz uso da condenação acaba dando satisfação às forças demoníacas. Sholem: “do ponto de vista do propósito criativo do amor, o ato de condenar – mesmo quando se trata de condenar o pecado, a injustiça e a maldade, – revela-se uma força concretamente hostil e destrutiva”.

As luzes que condenam se tornam incapazes de iluminar: para todos os efeitos, são como se fossem trevas.

 

Na terceira e última parte do livro Keith propõe uma perspectiva histórica do amor impenitente e triunfante – perspectiva que acaba se revelando estreitíssima. Quantos seres humanos podem servir de exemplo de luzes não contaminadas pelo Juízo Severo? Quem foi capaz de servir a Deus sem derrapar na armadilha de dar corda à maldade condenando o erro dos outros?

Keith nos diz que “de exemplos podem existir outros”, mas ele mesmo consegue pensar só em dois: São Francisco e o próprio Jesus (excluindo desse modo São Côro, que de modo algum se sentiria ofendido).

Francisco pode ser o exemplo mais valioso, já que compartilha com o resto da humanidade o grave destino de não ser o Filho. O fato de ser um exemplo solitário não diminui de modo algum a sua relevância; ao contrário, Francisco é tão singular que pode eficazmente salientar as nossas faltas e na sua compaixão cobri-las, ao mesmo tempo em que nos seduz continuamente a corrigi-las.

E o exemplo de São Francisco é notabilíssimo: que se saiba nenhum seguidor de Jesus na história condenou menos do que o homem que decidiu chamar o lobo de irmão e a morte de irmã. Esse amor que não admitia exclusões é o traço mais desarmante e mais consistente do caráter de Francisco. “Irmã morte”, ele de fato dizia – e desse modo não excluía do seu amor nem mesmo a força que subtrai de cada criatura a possibilidade de amar nesta terra; subtrairia a sua e tinha subtraído aquela de Jesus.

Chesterton observou que os convertidos são particularmente atraídos pelo juízo severo: o homem perdoado é muito mais propenso a condenar o pecado dos outros do que aquele que nunca recorreu ao perdão. Alguns cristãos se mostram mais ou menos imunes a esta dinâmica, mas ninguém mais do que São Francisco.

Para Francisco era de fato o contrário: ser perdoado queria dizer não ter sido condenado, o que implicava num forte e persuasivo convite a não condenar. Mais do que isso, a disciplina de distanciar-se do juízo severo era parte fundamental – a parte mais criativa e reparadora, diria Luria – do ministério de São Francisco. Para ele a vocação mais profunda e o único método do seguidor de Jesus deveria ser amar sem exceção, amar sem objeção; amar sem qualquer ressalva, amar sem qualquer condenação.

A persuasão de Francisco era precisamente esta: não condenar é a máxima e a única eficaz persuasão.

Como ilustração Keith recorre, e não teria como ser diferente, ao caso de irmão Angelo Tarlati, discípulo de São Francisco e guardião do eremitério de Montecasale. Na ausência de Francisco o eremitério é visitado por três criminosos conhecidos da região, que vieram pedir algo para comer. Irmão Angelo, conhecendo a fama dos malfeitores, expulsa-os dali com grande fanfarra, acusando-os de querer roubar o sustento dos homens de Deus depois de terem defraudado e agredido o povo, mandando-os embora de mãos vazias e dizendo que não ousem voltar a pôr o pé naquele lugar sagrado.

Pouco depois chega São Francisco com vinho e um fardo de pão para o eremitério. Ele ouve a notícia e fica estarrecido diante da conduta de irmão Angelo diante da visita dos malfeitores.

«Eu lhe ordeno pela sua obediência», ele disse, «que você pegue este pão e este vinho e vá procurar esses ladrões de alto a baixo até encontrá-los. Ofereça este alimento como que de minha parte, ajoelhe-se diante deles, peça humildemente o seu perdão e peça-lhes em meu nome que deixem de fazer o mal e temam a Deus. Se o fizerem, eu prometo prover por todas as suas necessidades e providenciarei para que tenham sempre o necessário para comer e beber. Feito isso você pode voltar humildemente para cá.»

Irmão Angelo obedece e volta trazendo consigo os três ladrões – os quais, “depois que São Francisco deu-lhes a segurança do perdão de Deus”, adentram a ordem e encontram a conciliação, a comunhão e a paz.

A história exemplifica bem uma série de coisas. Primeiro que Francisco considerava o pecado erro menos grave do que a condenação do pecado: o que o deixa indignado não é a conduta dos criminosos, que não conhecem outra via, mas aquela de irmão Angelo, que absolutamente conhece. Segundo, fica claro que a restauração final, a efetiva salvação de três homens, torna-se possível somente porque Francisco recusou-se a condená-los, tratando-os como gente a ser tratada como gente – postura que contrasta vivamente com a reação sentenciosa, divisionista e totalmente ineficaz de irmão Angelo.

Finalmente, Francisco ilustra em palavras e atos que sua mensagem e sua missão estavam centrados não na condenação, mas no perdão dos pecados: a reconciliação é imediata “depois que São Francisco deu-lhes a segurança do perdão de Deus”.

Cada um desses pontos – o julgamento severo como mais grave do que o pecado, a acolhida sem ressalvas dos pecadores, a ênfase no perdão em vez de na condenação – pode ser diretamente traçado à fonte, a postura de Jesus nos evangelhos.

Invariavelmente, o católico Chesterton:

«Francisco estava repetindo singularidades que eram aquelas do Filho. Porém em termos estritos notável não é São Francisco; notável é que 1200 anos tivessem passado até que surgisse um discípulo digno do Mestre».

Porque Jesus vivia de fato mais próximo de pecadores (que não condenavam ninguém) do que de gente santa entre aspas, cuja razão de ser parecia se esgotar em julgar e condenar o erro do próximo.

O centro rigoroso da visão de mundo e da missão de Jesus era a o perdão universal dos pecados, um perdão sem exclusões, sem letras miúdas e sem reservas.

Na época de George Keith os tradutores do grego estavam ainda discutindo5 se o arrependimento/mudança de mentalidade era pré-requisito ou corolário do perdão dos pecados – “gente, arrependa-se para que os pecados sejam perdoados” ou “arrependa-se, gente, que os pecados foram perdoados”. O que é certo, observa Keith, é que para Jesus o perdão dos pecados não previa penitência prévia ou posterior, não previa um período de teste, não previa controle semestral; não dependia da gravidade do pecado, não dependia das consequências do pecado, não dependia da anuência de terceiros.

O perdão estava ali e era universal, era seu e vire-se: cabia a cada um o peso e a novíssima complicação de viver sem o auxílio da culpa. Provavelmente era esse processo de aprender a gerenciar o perdão que de fato caracterizava o arrependimento. O que o seu coração faria se de um dia para o outro se visse inteiramente livre da culpa? Bastaria, senhora minha, o resto da vida para entender?

Nada mais natural, portanto, que o processo de viver sem a culpa envolvesse aprender a abandonar o hábito de viver enchendo de culpa a vida dos outros. Envolveria distanciar-se deliberadamente do juízo severo, como faria Jesus, como fez São Francisco e como – segundo já o velho Velho Testamento – o próprio Deus decidiu que convinha fazer.

Não julguem para que não sejam julgados, parece claro o bastante. Se vocês perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os perdoarem, não estarão perdoados – e durma com um barulho desses.

É precisamente aqui, conclui Keith (ou Barclay, que me importa), que se insere o amor do bem e do mal intuído por São Côro. O dom de amar todas as coisas, mesmo as coisas horrendas, erradas e trágicas, pode requerer galões de maturidade mas não é realmente uma maldição. A boa nova requer perdoar a todos e cada um, inclusive a nós mesmos, e se o Filho encarnou é para mostrar que sem amar não é possível perdoar.

É incrível, concordo, que estejamos desde o primeiro momento capacitados para a tarefa.