A festa que desandou da nudez do santo

A festa que desandou da nudez do santo
Salvou o Concílio em Perosna por um triz
No Pericó não há hoje quem não fale:
Pendenga feia se desenleia no striptease
Mariolina de Ré da Cruz, 1957

No que diz respeito a São Côro a pauta cardinal do Concílio de Perosna de 1233 foi a questão da nudez, com a vitória dos pelados pleiteada pelo santo de Minância, decisão que os jesuítas tentariam reverter no século 16.

Julho de 1233, franciscanos e sancoristas, grupos jovens e em fase de organização os dois, levantaram em Perosna objeção aos monges niquelinos de matriz beneditina, chegados do Reino de Portugal ao Recife em 1199, inflamados à intransigência pelos fogos da Reconquista e das cruzadas.

Aqui na terra os niquelinos por onde passavam entendiam de exigir dos indígenas convertidos que abandonassem a nudez tanto pública quanto doméstica, e a Perosna vieram requerer a proibição universal da nudez mesmo entre os índios não convertidos.

Mesmo diante dos apelos das duas frentes que o apoiavam, São Côro de Minância inicialmente recusou-se a participar do concílio, reputando ser coisa pouco de cristão “sentar numa roda em que não é qualquer um que pode sentar”. Mudou de posição em junho daquele ano depois de dançar numa chuvarada em São Mamede e com o concílio já em curso, lembrando S. Mateus 5:45 e tendo entendido que “o mundo (e portanto também o concílio) deve ser tratado não como é mas como deveria ser”.

Chegou de Santa Maria de José a Perosna com uma guarnição de pataxós, potiguaras e mucugês, homens mulheres de todas as idades que se pusessem em pé atrás dele na tribuna como a vinheta de uma iluminura, e começou a dizer:

«Não é em defesa desses irmãos nossos da mata que me coloco diante de vós’ês hoje; é em defesa nossa, minha e de vós’ês. Fique clara e patente a verdade evangélica de que pataxós, potiguaras, mucugês e demais nações desta terra não devem ceder ao convite de cobrir seus corpos como fomos ensinados a fazer. Nossa santa obrigação, de fato, é fazer com que convite esse eles cheguem a ouvir nunca. Os nossos niquelinos não querem ver a nudez dos índios convertidos, e o que não veem é que os índios não querem se converter, e se essa é a oferta da nossa salvação absolutamente não deveriam. Se hoje se quer discutir como fosse coisa de monta a distância entre os membros ao vento desses homens e mulheres e os nossos membros ocultos debaixo deste pano, deixo a vós’ês sobre o assunto três santas convicções.

«A primeira é natural: de certas visões Deus não nos protege, e da vista daquilo de que Deus a ninguém protege ninguém deveria se arvorar a proteger. Enquanto discutimos agora mesmo nesta cidade uma criança pode abrir uma porta e topar com um homem nu, um homem morto ou um casal entretido no deites. Por Deus, nada impede que ela abrindo a Escritura não encontre uma qualseja dessas coisas. Se o céu não desceu à terra para cobrir os nossos olhos dessas visões, não cabe a meros homens legislar sobre o que é lícito esconder ou revelar.

«A segunda é exegese: o Filho determinou a salvação não foi separando o puro do impuro como se fazia antes dele e como nos vemos tentados hoje a fazer. Na mesma sexta-feira o véu do Templo de Salomão se rasgou de alto abaixo, o divino se despiu diante de todos e o que estava levantado para separar foi posto abaixo. Mais longe e mais alto do que anos depois o concílio de Jerusalém1 ninguém deveria querer chegar: se os apóstolos no Espírito acharam por bem poupar os gentios de obrigações virtuosas como a circuncisão e os rituais do concerto de Abraão, ninguém debaixo da minha barba ouse propor como regra aquilo cuja virtude a Escritura nunca estabeleceu.

«A terceira é a recompensa que, na palavra do Filho, espera no último dia os que ignoram a própria santidade2. Não foi então o Filho a revelar que o vício de superioridade moral dos fariseus os impediu de aprender a orar com o melhor exemplo que tinham à mão, aquele precisamente do publicano que tomavam por impuro3? Hoje nesta casa a Palavra diz a mesma coisa através destes nossos irmãos, e o faz sem alarde como o publicano da parábola. Não é porque Hesíodo diz que nus devemos semear e lavrar a terra e que nus devemos colher; não é porque o Filho acolheu no Reino as prostitutas e denunciou a obscenidade da conduta de gente vestida; não é porque o crucificado se morrendo emprestou glória à morte de cruz, emprestou glória maior à nudez de que não foi poupado e não poupou; não é porque em Assis diante da multidão Francesco despiu os trapos da nobreza para vestir nudez melhor e mais alta. Não é só por todas essas coisas mas porque entre nós, na terra que a nós emprestam, andam pataxós, potiguaras, mucugês e suas multidões, e andavam assim antes de nós, vestindo a sua própria veste de boa nova e gozando sua sorte divinamente concedida e inspirada de salvação da condenação. Ninguém neste recinto ou em recinto futuro ouse querer ensinar a essa gente a vergonha, naquilo precisamente que são o exemplo melhor de decência que nos deu o céu, e aquele mais à mão.

E dito fez o que na congregação todos naturalmente temiam e esperavam e que não houve artista posterior de crônica, afresco, cantoria, xilogravura e cordel que tenha deixado de celebrar: em pé na tribuna diante dos olhos consagrados, São Côro despiu a rede de dormir em que se enrolava e que era a sua única propriedade e sua única peça de roupa e completamente nu ‒ escreve desse modo Sassorúbio, cronista do concílio ‒ “desceu entre nós, fazendo balançar a campainha”.

A alegria imitativa que fez desencadear este gesto, alegria que se entrevê na escolha de palavras ao mesmo tempo provocadora e litúrgica de Sassorúbio, vazou futuro adentro em enredos de toda a sorte e recordações verdadeiras e inventadas das mais variadas fontes. Não há registro claro ou incontroverso do que se seguiu, mas se concede que houve dança e batucada, que fogueiras foram puladas, que traficou a fundo o milho arcaico com a mandioca e a massa puba com a polpa do maracujá, que juntou gente de Currais Novos a Dindié, que pés descalços pisaram a água dos riachos, que os mucugês cantaram as curvas dos igarapés, que os priores gritaram feito maritacas e que havia no fim da festa mais índios na roda do que aqueles que tinham chegado no início.

Numa palavra, a tradição quer que a alegria contagiosa daquela noite determinou as decisões posteriores do Concílio de Perosna mais do que os argumentos e o discurso de São Côro, e prefigurou alegrias posteriores como aquela sozinha com que Carnivaldo de Bezerros desbaratou Alci Fazenzo de Mugém na Cidade da Parahyba em 1362.

Uma página talvez apócrifa de Sassorúbio, provavelmente acrescentada à crônica por um sancorista e preservada em duas cópias autógrafas, uma em Recife outra em Patos, quer que naquela ocasião foi que São Côro alertou os seus: «A coisa pior de não pouca que o cristão trouxe a esta terra foi a História; o melhor modo que tem, talvez só ele, de combater a História é com festa».

 

[do capítulo São furente de Minância da Hagiografia poética do Serestão.
Muraci Calandra, Canindé, 1973]