Se as profissões do Rio têm uma quadra comum, de fritureiro a mulestro, quituteira, malomante, passador de imbiricica, velandro, mestre-palo, bate-bola, carroceiro de pão doce, mascate de bomba de açúcar, jupará, lunário, gangalha, muruaçu, assodeiro, ruspante, zulejeira, dribulário, moedor de camarão, muriqui, raizeira, zarrincha, recenseador de folha, membreiro, refilador de cerol, garçom de rinha, vurrasca, zambeira, roedor de pequi, pelador, pirirista, banqueiro de gude, frejante, furista, ondira, juiz de porto, mureiro e cantador de fumeral, está em que por trás de todas espreita a mesma arte: o Teatro, o mesmo ofício: a Comédia, e a mesma disciplina: a Gozação. É nisso que corporação mais típica do Rio do que a Escola de Samba não existe, e rito máximo mais do que o Carnaval: o cordão agremia de um lado todas as ocupações e esvazia do outro a seriedade que qualseja modo de vida poderia querer requerer para si. Na miúda, a manifestação mais espontânea desse sentimento está encarnada no guiotim, a figura voluntária que o estado da Guanabara paga retroativamente por ter dado ao turista informações erradas de qualquer gênero a respeito de como funcionam as coisas no Rio de Janeiro.
João do Rio, As ocupações do Rio (1921)
Douzemar, emproado e cheio de melindres em sua camisa de chita carregada de caetés, tendo chegado à Guanabara dois dias antes da Parahyba, viajava em paz quando pinçaram a sua cabeça raspada no trem em Madureira. Dali por diante foi só um acumular de batuques, uma paixão com furores mais carregados a cada estação. Antes que botasse o pé para fora do ônibus na Pinheiro Machado, as lavadeiras despencavam dos morros em devassas cascatas, os meninos corriam por flores que pudessem jogar. Alertados pelo rádio, os taxistas acertavam os penteados, mulheres de mais trinta se maquiavam na direção. Os executivos branquearam as suas agendas, os bombeiros tomaram banho, as palestras motivacionais se cancelaram pela mais injusta competição. As igrejas tocaram seus sinos, os bondes pararam na praça; de Santa Teresa os boêmios verteram em pleno dia pelos arcos da Lapa. Em Copacabana os mendigos ensaiavam seu coro, os barcos escalavam a areia, os garçons corriam com petiscos para a rua e nas sacadas se sacudia o champanhe.
Quando Douzemar pisou a pedra portuguesa da calçada de Botafogo, os carros da rua Farani tinham perdido seus motoristas, cem timbaleiros tocavam em formação e uma falange de motoboys improvisava uma coreografia.
Um cortejo de baianas descalças chegou com jarras de aluá e a dona de uma casa de câmbio ofertou um buquê de cravos rajados. Douzemar tirou as sandálias e foi caminhando sereno em direção à Urca, arrastando unanimidade que só fazia crescer.
«É a figura escarrada do homem valente, disse um jornalista.
«Um traço rústico que é muito atraente, disse um pintor.
«O queixo se vê que é feito a facão, disse uma esteticista.
«O peito largo como o sertão, disse um agrimensor.
«Os olhos são doces feito sapoti, disse uma confeiteira.
«E peludo macho mais que o mapinguari, disse um antropólogo.
«Homem mais vistoso não há no Brasil, disse uma analista financeira.
«E se subentende que é bem viril, disse o seu psicólogo.
«A barba fechada que é a orla do Tocantins, disse um lenhador.
«E as faces redondas dos serafins, gritou um franciscano.
«Os braços grossos que são uma tora, disse um cantador.
«E os pés miúdos, virados pra fora, disse um alagoano.
«Mas não há enredo que baste pra cantar, disse um capitão da polícia emocionado, toda a beleza de Douzemar.
Na praia Vermelha onde parou para molhar os pés, os aspirantes perfilhados sob o sol sambavam miudinho no lugar e saudavam um a um a passagem de Douzemar. Os oficiais do alto dos cavalos atiraram no chão os seus quepes, e um vereador lhe trouxe uma placa.
«É citado no meio acadêmico, disse alguém consultando o Lattes.
«E combateu o racismo sistêmico, disse um capoeirista.
«Eliminou a corrupção do Senado, disse um deputado.
«Jantou os jagunços no cerrado, disse um indianista.
«Não tem medo de assombração, disse um folclorista.
«E se mija toda a alma de Lampião, disse um pai-de-santo.
«Derrotou as milícias fascistas, disse um padre em pranto.
«Na discoteca arrasou nas pistas, disse um DJ num canto.
«Fez saques e resolveu cuestões, disse um assessor militar.
«Sua valentia não tem exceções, disse um estatístico.
«Condena abertamente a ditadura, disse uma comissão interdisciplinar.
«E mil sambas cantam a sua bravura, disse um diretor artístico.
«Mas não há verso que baste pra espelhar, disse um comendador, a candura que seja um pouco de Douzemar.
Quando contornou o morro da Babilônia e começou a desenhar a curva de Copacabana (com a ideia de refrescar em Ipanema) não havia espaço para um cristão a mais entre a praia da Saudade e o Leme. Giravam nos terraços os porta-estandartes, e nas ruas avançavam palmo a palmo os carros alegóricos.
«Sabe limpar peixe e plantar cana, disse um ecólogo.
«Mas tem uma quedinha por Humanas, disse um faxineiro.
«Ninguém sabe ser mais tolerante, disse um caminhoneiro.
«Ninguém melhor amante, disse uma gestante.
«Ninguém tem mais firmes convicções, disse uma cartomante.
«E ninguém que se saiba maiores colhões, disse um cangaceiro.
«Leu Derrida, leu Marx, leu Deleuze, disse uma historiadora.
«Ama ateus e feministas e ainda crê em Deus, disse um rapaz.
«Sabe sambar e vencer no repente, disse um lavrador.
«É cheio de axé e abraça crente, disse um Nobel da paz.
«Gosta de mulher mas com homem também dança, disse uma motociclista.
«Alma de malandro num corpo de criança, disse um carregador do porto.
«Mas não há refrão que baste pra exaltar, cantaram todos na avenida Atlântica, as grandezas de Douzemar.
O paraibano estava calcando a calçada marejada do posto nove e a alegria da festa tinha já despregado do motivo, como prescreve Cimério Ruanda em O teatro do esjagero (1867) a respeito do percurso das festas do Rio. Os transes e batuques se alongaram até noite funda e não se conhece a porta de um bar que tenha visto cerrada o alvorecer do outro dia, mas o nome de Douzemar a multidão não voltou a gritar.
Não entendeu assim um americano troncudo de bigode dourado, inteiramente fascinado pelo acúmulo de timbaus e chorinhos, que vendo passar Douzemar em sua glória concluiu que fosse um sujeito famoso e começou a pensar nos seus possíveis usos na publicidade.
No seu engano deu-lhe corda um passante, que passou mais tarde no distrito para descontar o seu prêmio de guiotim, e contou depois ter encontrado na fila cada um que tinha visto foliando na avenida.