A arte da interrupção

Arievaldo Viana quem me clareou que das três malasartes do Norte – o bolodório1, a arte da conversa fiada; o paleio2, a arte da ofensa e do repente; e o entreio, a arte da interrupção, – é o entreio aquela que deve sem dúvida mais ao afro-americano e ao ameríndio do que ao europeu.

A conversa fiada e o repente, mesmo considerando quanto tenham sido transfigurados no diálogo com o sertão, existiam de modo mais que embrionário na cultura europeia. O entreio – a interrupção criativa – é por outro lado a intervenção transversal do afro-americano/ameríndio na linearidade do rito e da cultura europeus: é o toque que visa desenhar a curva, é o drible que transforma em roda aquilo que para o europeu deveria ser linha reta3.

O entreio (que no Ceará se chama também troncadura e na Parahyba pontuada), tira o seu poder do artifício de passar por cima, como se não existisse, de tudo que no rito europeu é rígido, formal e hierárquico. Não importa a arena (se litúrgica, acadêmica, legal, artística, esportiva, burocrática, sexual), o rito europeu é vulnerável no que odeia ser interrompido. Não admitindo sequer a possibilidade da interrupção, não tem reserva, recurso alocado ou procedimento para lidar com ela quando acontece – exceto a velha resposta da autoridade, resposta que um entreio bem feito já terá tratado de antemão de desarmar.

O objetivo do entreio é desse modo desarmar cada arranjo ritual da tradição européia, com suas delimitações, protocolos e regras, e transformar o que era quadrado em roda – roda como aquelas de capoeira ou de samba, em que qualquer um devidamente inspirado pode entrar, jogar e contribuir.

Em Cultura insubmissa4, Rosemberg Cariry e Oswald Barroso levantam exemplos clássicos do entreio na tradição do Norte. Estão ali o cangaceiro Antônio Silvino, que durante a missa se punha de pé quando o padre dizia à congregação que se sentasse, e vice-versa. Estão ali os repentistas do Cariri e do Seridó da década de 1920, que no teatro se levantavam sem aviso na plateia e buscavam entabular com os personagens no palco uma discussão crítica sobre as suas escolhas e dilemas. Está ali Aerolina Vespasiana, fazedora de alpargatas que por doze anos escreveu e colocou no correio cartas de amor aos homens de Quixeramobim, como porém tivessem sido escritas (e assinadas) por outros homens da cidade – causando famosamente ondas de choque de inaudita repercussão5.

Para Patativa do Assaré, o entreio se fundamenta menos no desejo de ruptura pura e simples do que numa cosmovisão positiva e encantada, um senso de maravilha: “quem interrompe com entreio aquilo que quer é alargar o mundo”.

Este é Ariano Suassuna:

Está aí uma crença sertaneja: não importa a qualidade da graça que a cultura oficial esteja administrando, tem sempre alguém capaz de contribuir com uma graça maior. O entreio é isso: num mundo saturado, o sujeito deve sentir-se livre para dispensar uma maior graça como bem acha que deve. Pensar aí Bergamino Mariola, o jogador do Gentilândia que entretinha o adversário executando em campo passos de balé clássico.

Arievaldo Viana me disse uma vez que as manifestações da cultura do Norte são todas, de certo modo, sujeitas ao entreio. “Basta pensar o quanto o bolodório e o paleio se podem usar para interromper uma qualseja situação”.

Nesse sentido a conversa fiada e o repente podem servir na elaboração daquilo que Lévi-Strauss chama de desobediência mole, ferramenta que a cultura popular levanta para resistir transversalmente e subverter os sistemas de dominação.

Sem nunca chegar a saber, daquela conversa com Arievaldo participou também Rondinelly Gomes de Medeiros, que tinha já me dito que o entreio é, precisamente como a Escritura, polêmica da cultura popular contra a civilização, e que não existe entreio maior do que a Encarnação.

Nesse meio tempo Entreio é resistência, dizia uma medalhinha que sacudia presa no espelho do motorista no Santana de Arievaldo, ali na estrada de Canindé.

 

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